quinta-feira, 19 de novembro de 2015

CORA RÓNAI - "Minas: como dói!"

Minas: como dói!
Cora Rónai 

Sobrou um vídeo. Mostra aquela paisagem tranquila do interior de Minas, com montanhas e vales verdes, casinhas pequenas, pastos, um resto de arquitetura colonial. Um homem passa no seu cavalo branco, pessoas conversam sentadas em cadeiras na calçada; ao fundo, o som de uma viola caipira. Uma igreja branca, uma praça, ruas de terra batida e o restaurante de comida caseira de Sandra Dometirdes. É ela quem descreve os encantos do lugar para a repórter Thatiana Zacarias Freitas, recomendando uma cachoeira boa para banho e um passeio de vinte minutos pela mata, onde há mais quedas d'água e as ruínas de uma outra igreja -- tudo isso sem falar numa coxinha famosa, e em pés de moleque e cocadas.
Bento Rodrigues também estava ficando conhecida na região pela sua geleia de pimenta biquinho, produzida por um grupo de sete mulheres e um homem da associação de hortifrutigranjeiros local.

Thatiana tinha apenas duas semanas de trabalho na Top Cultura, uma afiliada da TV Cultura, quando fez a reportagem, tão clara, bonita e singela quanto o que retratava. O trabalho, que há 15 dias era apenas mais um clip entre os tantos produzidos continuamente pela emissora, ganhou dimensões históricas: hoje, é o principal registro da cidade que a lama levou. Com pouco mais de quatro minutos, ele se contrapõe de forma dolorosa às incontáveis imagens que já vimos da destruição, porque ali está, de forma clara, o que se perdeu.
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Assisti várias vezes a este pequeno vídeo, que só no Facebook já teve mais de um milhão de visualizações.
Fiquei imaginando o que teria acontecido à Sandra do restaurante e às empreendedoras da geleia de pimenta biquinho, até que a internet me trouxe notícias.
Através de um site de viagens mineiro, fiquei sabendo que Sandra escapou; já na página da Rede Minas descobri que as mulheres da associação de hortifrutigranjeiros estão abrigadas numa pousada em Mariana. Perderam tudo -- roupas, documentos, lembranças de família.
Mas não só isso: o futuro também foi levado pela enxurrada tóxica. Elas já tinham encomendas de três mil potes de geleia feitas por supermercados de Belo Horizonte, iam participar de uma feira de alimentos na Alemanha e pensavam até em expandir o negócio. A sede da associação não sofreu danos, mas a plantação (e a terra) estão destruídas.
Sandra, que além do restaurante mantinha uma pousada, contou para Marlyana Tavares, do "Planejo viajar", que nada resta do seu empreendimento. O casarão centenário, que herdara do pai e que havia sido reformado recentemente, desapareceu debaixo de quinze metros de lama. Ela ainda tentou voltar para pegar os documentos, mas nem para isso teve mais tempo.
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Penso nas vidas que já não existem, nas vidas delas e nas vidas de tantas outras pessoas afetadas por esta tragédia.
Penso nos vilarejos pequenos de que nem estamos ouvindo falar, nos bichos, nas modas de viola, nas tardes desaparecidas, no sossego que nunca mais, e sinto uma tristeza enorme, uma raiva profunda e uma vergonha indescritível por viver num país tão negligente e irresponsável.
Como é que uma barragem se rompe sem que haja um sistema de alerta?! E como é que não há um sistema de alerta quando existem apenas quatro -- um dois três quatro -- fiscais para mais de setecentas barragens?! Quais são os governos que permitem um absurdo desses, que aceitam conviver com essa culpa?! Quem são os homens e mulheres que desprezam a esse ponto a sua terra e a vida dos seus semelhantes?!
PT, PSDB, PMDB e toda a lamentável sopa de letrinhas da nossa política nojenta são igualmente culpados por esta tragédia. Não é de um dia para outro que se constrói uma situação de perigo desse tamanho, nem é de um dia para outro que uma mineradora adquire tal certeza de impunidade que nem uma sirene instala na porcaria da sua barragem. É preciso muita lei frouxa e muito compadrio para chegar a este grau de descaso.
Num país de verdade, onde pessoas e empresas são responsabilizadas pelos seus atos, mesmo as companhias mais predatórias acabam tomando um mínimo de cuidado, não porque necessariamente respeitem a vida humana ou o meio-ambiente, mas talvez porque a ideia de ir para a cadeia não agrade aos seus executivos -- e porque, fazendo as contas, todos percebem que é melhor andar na linha.
Aqui não só ninguém vai para a cadeia como, fazendo as contas, Samarco, Vale e BHP não têm qualquer estímulo para mudar as suas práticas medievais de segurança. Uma multa de R$ 250 milhões para uma empresa que fatura R$ 7,5 bilhões por ano é uma ação entre amigos.
No mais, por maior que fosse essa multa -- de que adiantaria agora? Não há dinheiro no mundo que pague a perda de tanta vida e de tanta beleza. O que aconteceu em Minas não tem preço. Nem tem perdão.
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Na semana passada, eu havia prometido continuar contando da Coreia do Norte; mas eu precisava escrever isso aqui, precisava desabafar. Desde que mataram parte do meu país ando com vontade de chorar, de gritar e de ir para a rua quebrar tudo.

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(O Globo, Segundo Caderno, 19.11.2015)

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