domingo, 24 de fevereiro de 2019

Um domingo de reflexões...

EDUARDO CARLI DE MORAES em "Novos 'Ensaios Sobre a Cegueira' " 

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“A Humanidade como Fraternidade permanece no horizonte das utopias. 
A cada passo em sua direção que damos, para relembrar um célebre dito de Eduardo Galeano, a utopia dá dez passos para trás. Como se fugisse do abraço. Como se quisesse forçar-nos a ser camelos no deserto, em busca de oásis incerto, pelos séculos e milênios. 
Já são mais de 3 décadas desde que John Lennon imaginou, sentado ao piano branco, que não haveria mais céu nem inferno, apenas uma “brotherhood of man”. Mas ele, que só estava dizendo “dê uma chance à paz”, acabou assassinado.

Outro célebre pacifista, que peregrinou de pés descalços por toda a Índia, tentando ensinar a hindus, muçulmanos e sikhs a arte da convivência pacífica e do respeito à multiplicidade e à diferença, dizia: “O olho-por-olho vai deixar o mundo todo cego.” A triste verdade é que a cegueira venceu e também Gandhi foi assassinado, tendo seu ideal tripudiado pela catástrofe histórica da Partição Índia / Paquistão: em 1947, o pior dos pesadelos gandhianos se tornou realidade quando estourou a guerra civil entre hindus e muçulmanos. O saldo trágico do conflito: mais de 1 milhão de mortos e mais de 7 milhões de refugiados.

Invocar uma canção de Lennon, um dito sábio de Gandhi, um convite à caminhada de Galeano: de que serve isso diante da desumanidade?
(...)
Cantar sobre a beleza das flores e dos pássaros algum dia já impediu os tanques-de-guerra de marcharem sobre os jardins e de metralharem os sabiás? 
Clamar para que o valor da vida humana seja respeitado é o bastante para dissuadir os homens (...) com licença-para-matar?
(...)
No fundo, as pessoas aderem a uma certa identidade, vestem uma certa máscara, introjetam uma certa ideologia, e depois se esquecem de que, na origem, a doutrina religiosa ou política que transformaram em dogma é fruto de um condicionamento social, dependente de um tempo-espaço histórico específico. 
Este caminho para a convivência pacífica que tento pensar passa necessariamente por des-dogmatizar as identidades – ou seja, precisamos deixar de levar tão a sério as nossas identificações identitárias com religiões, raças, pátrias etc.
As identidades sólidas, a filiação dogmática a seitas e ideologias, a incapacidade de enxergar o que nos une ao invés do que nos separa, tudo isso precisaria ser transcendido para que fôssemos capazes de nos perceber como conviventes sob o mesmo sol, todos juntos no mesmo planeta, todos iluminados pela luz distante da mesma miríade infindável de estrelas.
(...)
Seria preciso que enxergássemos, para além de nossa cegueira habitual, já encrustada nas retinas e nos neurônios, que ninguém está condenado, do berço ao túmulo, a ser algo de fixo – judeu, muçulmano, cristão, budista, ou o que quer que seja. Que uma identidade não só pode, mas deve ser fluida, móvel, mutante. Que não há nada mais sábio do que mudar acompanhando a mudança do mundo. 
Que viver é deixar-se afetar e crescer pelas interações e contatos com os outros. Que coexistência é nossa condição ontológica, nossa necessária situação no mundo, e que aprender a conviver é aprender a viver.
(...)
Há algum tempo, o escritor indiano Salman Rushdie, após a publicação de seu romance “Os Versículos Satânicos”, foi fulminado pela fatwa (pena de morte) decretada pelo aiatolá xiita do Irã, só podendo sobreviver por ter recebido guarida na Inglaterra. 
Rushdie defendeu-se das perseguições do regime de Khomeini com as seguintes palavras – sublimes – de seu livro “Pátrias Imaginárias”:

 Os Versículos Satânicos celebra a hibridez, a impureza, a mistura, a transformação que provém de novas e inesperadas combinações de seres humanos, culturas, idéias, políticas, filmes, canções. 
Exulta com o cruzamento de raças e teme o absolutismo do Puro […] 
Certamente que não põe em causa os direitos das pessoas à sua fé, embora eu não tenha nenhuma. 
Discorda manifestamente das ortodoxias impostas de todos os tipos, da opinião que o mundo é muito claramente Isto e não Aquilo. 
Discorda do fim do debate, da disputa, da discordância. 
Discorda também do sectarismo comunalista hindu, do tipo de terrorismo sikh que faz explodir aviões, das fatuidades do criacionismo cristão, bem como das definições mais limitadas do Islã […] 
É uma canção de amor aos nossos eus mestiços…’

Cantemos, pois, nossas canções de amor a nossos eus mestiços!”

*            *            *


domingo, 17 de fevereiro de 2019

Papinho furado de Domingo


Papinho furado de Domingo, 17 de fevereiro 2019
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Para quem gosta de ‘curiosidades’ – digamos assim -  da nossa Língua Portuguesa: “Está tudo como dantes no quartel d’Abrantes”.

Essa expressão surgiu no início do século 19, com a invasão de Napoleão Bonaparte à Península Ibérica.
Portugal foi tomado pelas forças francesas, porque havia demorou a obedecer ao Bloqueio Continental, imposto por Napoleão, que obrigava o fechamento dos portos a qualquer navio inglês.
Em 1807, uma das primeiras cidades a serem invadidas pelo general Jean Androche Junot, braço-direito de Napoleão, foi Abrantes, a 152 quilômetros de Lisboa, na margem do rio Tejo. Lá ele instalou seu quartel-general e, meses depois, se fez nomear duque d’Abrantes.

O general encontrou o país praticamente sem governo, já que o príncipe-regente dom João VI e toda a corte portuguesa haviam fugido para o Brasil.
Durante a invasão, ninguém em Portugal ousou se opor ao duque. A tranquilidade com que ele se mantinha no poder provocou o dito irônico.
A quem perguntasse como iam as coisas, a resposta era sempre a mesma:
“Está tudo como dantes no quartel d’Abrantes”.

Até hoje se usa a frase para indicar que nada mudou.
*

Meu pitaco: Entendo como a frustração da esperança em mudar uma situação desagradável.
Pertinente, pois.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Uma aula de gramática poética por Cecília de Meireles

O livro da solidão
Cecília Meireles, crônica no livro “Cecília Meireles – Obra em Prosa – Vol. 1”, 
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1998, p. 270.


Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: “Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta…?”

Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: “Uma história de Napoleão.” Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio… Pode ser um passatempo…

Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo… E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.

Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.

Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.

Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém…

O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.

O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números…

O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.

E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas…

Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores…

A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.

E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.

Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.

Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.

(São Paulo, Folha da Manhã, 11 de julho de 1948.)

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terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A vida é dura... - Eberth Vêncio em 'Revista Bula'

A vida é dura e nos reserva incontáveis caneladas
Eberth Vêncio - em 'Revista Bula'

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Não posso dizer que sinta orgulho das minhas metas pessoais para o ano novo. Vender o carro. Acordar mais cedo. Trabalhar além das 44 horas semanais regulamentares. Pagar dívidas. Juntar dinheiro. Sinto um especial prazer em quitar uma duplicata. 
Quem é que me explica isso? 
Meu analista está operando na bolsa. Talvez, eu opere o saco com o Doutor Jivago. 
Pensando bem, é um privilégio estar com saúde suficiente para defender uns trampos e ir tocando em frente até quando o governo quiser. Trabalhar até morrer. Então, é isso. 
A vida não está para poesia. Provavelmente, nunca esteve. Mesmo assim, uma cena inspiradora me afeta: um sujeito passa por mim saltitando, socando o ar. É como se fizesse um gol depois de abrir o envelope e se deparar com a conclusão do laudo laboratorial, impresso em letras garrafais: NEGATIVO. Este sabe viver. Se não sabe, acaba de ganhar uma nova oportunidade.

Rango na lanchonete. Muvuca de gente. Engulo sapos pra variar. Um guri dos mais minúsculos aponta-me o polegar direito para cima enquanto suga um sorvete. “Tudo joia, moço?”. Devolvo a mímica com um econômico sorriso no rosto. É o máximo que consigo no final do mês. 

Olhando com cuidado, parece, sim, restar vestígios de positividade no ar. 
Uma mulher jovem e atraente, uma típica personagem daqueles filmes noir, repreende o pirralho por ter lambrecado a roupa com sorvete derretido. “Dá de mamar pra ele”, eu penso que adoraria ver as suas tetas. Existe aí uma treta. As mães pensam que sabem tudo, as mães pensam que podem tudo, mas, elas não sabem nada, as mães não podem quase nada além de serem reverenciadas pelos filhos até os ossos. 
A vida é dura e nos reserva incontáveis caneladas.

Por exemplo: não sou um bom exemplo de ser humano. Perdi os óculos. Perdi a fé. 

Alguns bons amigos perderam os empregos e agora integram uma vergonhosa cambada com milhões de desempregados. Muitos querem se mudar do país, quem sabe, para Portugal, a nossa pátria mater. Puta que o pariu! Quisera conhecer Lisboa, Coimbra e a Cidade do Porto. Cheiro de bacalhau é foda. Prefiro picanha. Não quero me mandar. Eu preciso mesmo é me mudar, mas, me mudar por dentro, colocando os pingos nos “is”, os rancores nos cofres do esquecimento e os pensamentos no lugar.

Lucubro. Sei que divagar me leva longe. Tenho pressa. Tanta pressa embota os meus sentidos. 

Não tenho sentido muito mais do que saudades do moço que um dia eu fui, apesar da frivolidade, da ingenuidade e da típica prepotência juvenil. Prefiro um mancebo arrogante do que um velho cínico. O que seria do mundo sem a intrepidez dos jovens? Nada além de um traste entristecido esperando ser aceito no céu. Houve um tempo em que eu quis mais. Eu esperava mais de Deus, pra se ter uma ideia.

Já tive ambições maiores do que conseguir acertar as contas com o Tesouro Nacional. É a quarta vez no dia que me convidam para um bolão de loteria. Mas, que porra é essa? Que diabo de gente chata é essa que sonha em ser milionária para a vida fazer sentido? Sinto comunicar que rico é aquele que encontra grandeza nas miudezas da vida. Quase ninguém concorda. A não ser, nos últimos estertores, quando prestes a realizar “a grande travessia”. Grande merda. Acho isso tão triste como um tango. É por isso que eu não danço. Mas, eu escrevo. Como se fosse uma espécie de Manoel de Barros com dor no ciático.


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Toquinho - " Lindo E Triste Brasil "

domingo, 10 de fevereiro de 2019

"Assasinato no Expresso Oriente"


Música final da trilha sonora do filme 'Assassinato no Expresso Oriente'. (2017)
Eu li o romance do mesmo nome - no qual o filme foi inspirado - da autora Agatha Christie, mas não tinha visto no cinema. Lindo filme.
Gostei muito desta música também pela surpresa da bela voz de Michelle Pfeiffer, atriz que sempre admirei.