Por estranho que possa parecer a um brasileiro, existe um país onde os políticos ganham pouco, andam de ônibus, cozinham sua própria comida, lavam e passam suas roupas e são tratados por “você”.
É esta a realidade que a jornalista CLAUDIA WALLIN descreve no livro “Um País Sem Excelências e Mordomias” (Geração Editorial).
Radicada na Suécia depois de trabalhar 10 anos em Londres, Claudia registra conversas com deputados que desconhecem mordomias e o tratamento de “Excelência”, que não aumentam o próprio salário e – acreditem – não entraram na vida pública para enriquecer ou levar vantagem. E explica como funciona o sistema político sueco, baseado em três pilares: transparência, educação e igualdade.
Por tudo isso, trata-se de uma leitura capaz de provocar vergonha e raiva no leitor e no eleitor brasileiro – dois sentimentos que podem ser um bom começo para a mudança.
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Entrevista com a autora:
- Quais são as diferenças mais chocantes entre as rotinas de um político eleito na Suécia e de um político eleito no Brasil?
Claudia Wallin: A Suécia não oferece luxo ou privilégios aos seus políticos, ao contrário do Brasil. Parlamentares suecos vão de ônibus para o trabalho, e viram manchete de jornal quando se atrevem a pegar um táxi com o dinheiro do contribuinte. Vivem em apartamentos funcionais que chegam a ter 18 metros quadrados, e onde não há comodidades como máquina de lavar – as lavanderias são comunitárias.
O ministro sueco Anders Borg, que em 2011 foi eleito pelo jornal britânico ”Financial Times” como o melhor ministro das Finanças da Europa, vive na capital em um apartamento conjugado de cerca de 25 metros quadrados.
Nenhum deputado sueco tem direito a pensão vitalícia, plano de saúde privada nem imunidade parlamentar. Nenhum político sueco tem o privilégio fabuloso de poder aumentar o próprio salário.
Parlamentares suecos trabalham em gabinetes de cerca de 15 metros quadrados, e não têm direito a secretária, assessor nem motorista particular.
Vereadores suecos não recebem sequer salário, e não têm direito a gabinete – trabalham de casa. Na concepção sueca, sistemas que concedem privilégios e regalias aos políticos são perigosos. Porque transformam políticos em uma espécie de classe superior, que não sabe como vivem os cidadãos comuns. Dessa maneira, conforme sublinham vários políticos suecos, cria-se uma distância entre o povo e seus representantes, o que por sua vez gera um sentimento de desconfiança e descrença da população em relação aos políticos.
- Que interpretação você faz dessas diferenças? Quais são as raízes históricas e culturais que levaram a modelos tão diferentes?
Claudia: A Suécia tem uma história marcada por uma longa tradição de democracia, e por um forte sentimento de igualdade entre as pessoas. Mesmo durante o período de poder monárquico, ao lado do rei sempre existiu um parlamento, e já na Idade Média havia a participação de pessoas comuns e camponeses nas assembleias políticas, ao lado do clero e da nobreza.
Ao longo dos tempos, foi preciso lutar contra o poder do rei e os privilégios da nobreza. O rei perdeu todos os poderes na década de 70, e o desenvolvimento da democracia sempre esteve associado aos valores igualitários da sociedade sueca: ninguém deve ser melhor do que ninguém, e isso inclui a classe política.
Políticos suecos sabem que não estão no poder para enriquecer, e sim para representar os interesses da sociedade como um todo.
Já no Brasil, ainda vigoram o conceito patrimonialista e os privilégios políticos que marcaram o processo de formação do Estado brasileiro, com a visão de que a coisa pública não é de ninguém. O interessante é notar que a Suécia, que juridicamente ainda é uma monarquia, conseguiu concretizar o ideal republicano. O Brasil, que formalmente é uma república, ainda é um país de súditos.
- Na Suécia um deputado só ganha 50% a mais que um professor primário. O investimento na educação explica o grau de consciência cidadã dos suecos – da mesma forma que a falta de investimento em educação explica o atraso dos brasileiros?
Claudia: A educação é um dos pilares fundamentais da democracia sueca, e a base de todo grande salto no processo de desenvolvimento democrático de uma sociedade. Na Suécia, o ensino é gratuito e de qualidade para todos até a universidade, o que sem dúvida se reflete no alto grau de conscientização política dos cidadãos.
Existe uma clara consciência aqui de que os políticos são eleitos para servir, e não para serem servidos.
Política também não é algo que se discute apenas em ano de eleição, e embora o voto não seja obrigatório na Suécia, o índice de comparecimento às urnas no país tem se situado historicamente entre 80% e 90%. E esta sociedade mais consciente não dá privilégios aos seus políticos, nem aceita os desvios do poder.
Os movimentos de grupos organizados da sociedade civil também foram essenciais para o processo gradual de construção da cidadania na Suécia, assim como as políticas igualitárias de inclusão, que possibilitaram o acesso de todos os cidadãos a serviços básicos de qualidade e reforçaram a noção de que todos têm os mesmos direitos.
À medida que o Brasil avançar em suas políticas de educação e inclusão social, certamente vai estar formando uma sociedade mais consciente a respeito da importância da política, e também mais exigente em relação aos seus representantes políticos.
- Qual a motivação para um sueco entrar para a política, sendo uma carreira que traz tão poucas recompensas?
Claudia: A real motivação de qualquer cidadão para entrar na política deve ser o poder de influenciar os rumos de uma sociedade e as decisões que beneficiam o interesse coletivo, e é isso que a maioria dos suecos parece privilegiar.
Para aqueles que atingem o topo da carreira política, como por exemplo é o caso do exercício de cargos ministeriais, os salários também estão bem acima da média salarial da população. E é claro que o poder sempre exerce fascínio.
Mas na Suécia, o poder político exclui a obtenção automática de privilégios pessoais pagos com o dinheiro do cidadão, como passear de jatinhos ou helicópteros com a família, a babá e o cachorro. Porque os suecos não querem ver seus políticos levando uma vida de luxo. É como resumiu um sueco que entrevistei em uma rua de Estocolmo: ”Sou eu que pago os políticos. E não vejo razão nenhuma para dar a eles uma vida de luxo”.
E é como destacou um dos deputados suecos com quem conversei, a respeito da ausência de regalias políticas na Suécia: "Para ter o respeito dos cidadãos que representamos, é preciso usar o dinheiro dos contribuintes de forma sensata. Há pessoas desempregadas e outros problemas em nosso país, e penso que o dinheiro público deve ser usado de forma mais inteligente. Nós vivemos como pessoas normais." Ingvar Carlsson [ex-primeiro-ministro sueco] estava sempre no ponto de ônibus quando saía do trabalho. Na semana passada, eu o vi na mesma parada de ônibus. Você caminha pelas ruas e vê ministros andando. Todos vivem vidas normais.”
- Que visão os suecos têm da política brasileira? Eles têm consciência dos privilégios da nossa classe política e da corrupção endêmica em nosso país?
Claudia: Na verdade, não existe na Suécia um conhecimento detalhado da realidade política brasileira. O que posso dizer é que vi muitas sobrancelhas levantadas e várias expressões de perplexidade, quando citei alguns privilégios políticos brasileiros e casos de corrupção durante as conversas que mantive com políticos, cientistas sociais, jornalistas e juízes suecos no processo de elaboração do livro.
Na concepção dos suecos, usar o dinheiro dos impostos para conceder privilégios e regalias aos políticos é uma afronta, e um desrespeito ao dinheiro dos contribuintes.
Quando perguntei ao primeiro-ministro sueco qual era a opinião dele sobre os privilégios políticos de países como o Brasil, ele disse o seguinte: ”Em primeiro lugar, é muito importante dizer que respeito o fato de que o Brasil é uma democracia e que portanto cabe àqueles que são eleitos pelo povo responder a este tipo de questão. Mas para dizer o óbvio, se eu fosse o ministro da Fazenda do Brasil e tivesse que fazer um corte de gastos, eu saberia exatamente por onde começar. Porque quando um político precisa cortar gastos, é muito importante mostrar que ele próprio dá o exemplo. No nosso país, as pessoas estão sempre atentas aos custos da burocracia e da classe política. Se um político quer manter a confiança dos eleitores, deve estar próximo das pessoas.”
- O que acontece com deputados flagrados em casos de corrupção na Suécia?
Claudia: Em primeiro lugar, toda e qualquer quantia indevidamente apropriada por um político deve ser imediatamente devolvida aos cofres púbicos. Em segundo lugar, começa o processo mais temido por um político sueco: a execração pública na mídia, que inevitavelmente ceifa as chances de uma reeleição.
Um dos casos que eu narro no livro é o de um ex-líder do Partido Social-Democrata, que renunciou na esteira de um escândalo provocado pela revelação de que a companheira dele não pagava para morar no apartamento funcional onde viviam. Sim, porque na Suécia o Estado só paga apartamento funcional na capital para o político: se a esposa decide morar lá, tem que pagar pela metade do valor do aluguel. O líder jurou que não sabia das regras, mas pagou prontamente todo o dinheiro devido aos cofres públicos – e sumiu nas sombras do partido.
Outro exemplo é o caso das duas ministras obrigadas a renunciar em 2006 poucos dias após sua nomeação, diante de revelações de que haviam empregado babás sem recolher os devidos impostos: pagaram o que deviam, e abandonaram a carreira política.
A lei sueca não prevê penas especialmente duras para casos de corrupção política. Mas como diz o diretor da Agência Nacional Anti-Corrupção sueca, quem pune políticos corruptos é a opinião pública. Políticos corruptos não são reeleitos na Suécia, o que naturalmente é reflexo do nível de escolaridade e conscientização política do eleitorado.
- Num país onde os políticos são honestos e não têm privilégios, quais são os grandes temas dos debates em época de eleição? Os conceitos de esquerda e direita ainda têm valor na Suécia?
Claudia: É preciso dizer que o estilo sueco de fazer campanha eleitoral é marcado pelo debate exaustivo e detalhado de propostas concretas de governo, e pela ausência de ataques pessoais entre adversários. Candidatos em geral não se atacam, e não se atracam.
Existe um respeito comum à democracia, que é também uma exigência do eleitorado: várias pesquisas apontam que o eleitor sueco costuma punir nas urnas os candidatos que assumem atitudes mais duras contra seus oponentes.
Na campanha das eleições gerais realizada este mês, um dos principais temas do debate foram as propostas para a geração de empregos, diante do nível de desemprego particularmente alto entre os jovens. Outro tema central foi a educação – os suecos querem melhores resultados no desempenho escolar, e a redução do número de alunos por turma nas salas de aula. Mas a questão da imigração foi um dos temas mais polêmicos na profusão de debates e duelos políticos diários, diante do número cada vez maior de refugiados que chegam ao país fugindo dos conflitos no Oriente Médio – mais 80 mil são esperados este ano – e do crescimento do apoio ao partido da extrema-direita, o Sverigedemokraterna (”Democratas da Suécia”) – que, após as eleições, diante de uma Suécia em choque, acabou se tornando o terceiro maior partido do país.
Ideologicamente, os conceitos de esquerda e direita ainda vigoram, embora haja uma tendência acentuada dos principais partidos políticos em direção ao centro. A social-democracia sueca, que tenta agora formar um governo após uma apertada vitória eleitoral, mantém sua visão essencialmente igualitária de país: uma sociedade com a menor distância possível entre ricos e pobres, e também com a menor distância possível entre aqueles que detêm e o poder e os que lhes dão poder através do voto.
- Você acredita que algum dia a democracia no Brasil chegará perto desse grau de civilização da Suécia? Por onde começar?
Claudia: É importante destacar que os suecos não são melhores do que ninguém: o ser humano é o mesmo. O livro mostra que a Suécia já foi um país bastante corrupto, e há pouco mais de cem anos era um dos países mais pobres e atrasados da Europa.
O que os suecos fizeram foi transformar a sua própria história, através de investimentos maciços em educação e pesquisa, de políticas de promoção da igualdade social e de uma série de reformas abrangentes que aperfeiçoaram gradualmente as instituições do país.
Hoje, a Suécia é uma das mais ricas e prósperas nações industrializadas do mundo, um dos países menos corruptos do mundo, e uma sociedade que não aceita os desvios do poder.
E se a Suécia transformou a própria história, o Brasil também pode melhorar a sua.
O caminho passa pelo maior acesso da população a uma educação de qualidade, pela maior conscientização popular sobre a importância da participação política, e por reformas relevantes nas instituições do país, como a reforma política.
É também preciso reconhecer os avanços que têm sido feitos, como a lei da transparência e a lei anticorrupção. Mas será preciso também mudar uma mentalidade.
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