sábado, 20 de fevereiro de 2016

Leonardo Sakamoto - lírico


Leonardo Sakamoto foi, para mim,  uma decepção como jornalista.
Entretanto, não posso ignorar seu mérito como escritor.
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Minicontos de Leonardo Sakamoto:

"Dia das Mães é data criada pelo capital para pilhar cidadãos, alienados na forma de consumidores-zumbis...Zzzzzz..."
Não me importo. Feliz Dia da Mães

***
Vó curava os dias tristes com bolinhos de chuva e esticava as manhãs leves com broas de milho.
Cair da bicicleta dava em galinhada; perder um dente, em sorvete de nata.
E para dor de saudade, vó?
Ela sabia que, para isso, não havia receita, pois durante anos tentara cozinhar a perda do vô.
E jogou o soluçar do neto no ombro, tirando o amargo de sua boca e enganando o vazio.
***
Primeiro, foram os nomes dos netos. Depois, a literatura que amava.
E ela foi se despindo na frente de todos.
Foi estranho, mas o Alzheimer lhe concedeu o direito a uma só lembrança.
O que é forte o suficiente para vencer o vazio? Para ela, o primeiro encontro com o homem de sua vida.
Passava as tardes na janela, esperando. "Ele vem", dizia a todos... Então o marido, companheiro de décadas, passou a lhe trazer margaridas para cortejá-la.
Até que, numa noite, ela disse, colocando as mãos em seus ombros: “Não precisa mais. Já me conquistou”. E dormiu um sono longo.
Vovô ainda leva flores, todos os dias.
***
Ainda escuro, ouvia meu pai estrilar os sininhos da bicicleta pela estrada de terra.
Quando clareava, ele retornava, aninhando-se junto à lenha do fogão para comer pão de milho. Perguntei o que fazia tão cedo. “Acordar o sol”, maldizia entre os dentes.
Foi então que, numa madrugada, ouviu-se apenas o silêncio.
Papai, cansado, decidiu dormir para sempre.
Ficamos sete dias no breu até que vovó, entregando a bicicleta, me deu o ofício da família - acordar o sol.
Minha mãe diz que é maldição. Eu não. Gosto do sininho.
***
Fazedor de arco-íris, seu avô dizia que era dele a tarefa de pintar os céus depois de tempestades.
Ao fim de um aguaceiro, ele se refugiava no velho moinho, girava a roda d’água e uma curva colorida se abria no horizonte. Orgulho.
Quem além dela tinha avô poderoso assim?
Até que, em uma tarde sem nuvens, o coração do velho desabou sobre a plantação.
Ela, em prantos, correu para o moinho a fim de pintar para ele. Girou, girou, girou, mas nada.
Vendo tristeza tão sincera, o céu se encolheu e chorou.
E o mais belo arco-íris que o mundo já viu se fez.
***
Tinha apenas um vestido, de chita, que ganhara do padrinho.
Pouco importava que seu corpo sumisse nele.
Ao vesti-lo, sentia-se a mulher mais linda do mundo. E, por isso, a mais linda se tornava.
O seu brilho ofuscou as outras meninas da vila, que de tocaia, rasgaram-no e o lançaram às cabras logo na véspera do São José.
Chorou tanto que o umbu floresceu.
Sua vó, então, colheu as flores e as costurou pacientemente na forma de um belo vestido branco.
À noite, a festa sem lua iluminou-se com ela - que dançou sob a benção das estrelas, sorrindo até a última pétala cair.
***
Com olhar severo e sem pressa, ela mexia o caldeirão de ferro fundido.
De dentro, um cheiro doce e perfumado corria a casa e tomava o rumo do mundo.
Horas depois, quando a lenha já era cinza e o sol se retirava, dava-se por satisfeita.
Mas dentro da panela, não havia mais nada. “Tava cozinhando, não. Tava é botando ordem nas coisas.”
Todos riam dela.
Até que vó morreu. Então, choveu três meses.
E a cidade desapareceu embaixo d’água para nunca mais voltar.


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