O medo veio morar ao lado
Miriam Leitão - jornalista e escritora
Pouca gente circula nesse horário inaugural do dia quando as sombras começam a ir embora. Por fim, os cachorros, também eles, param seu barulho.
Então os pássaros que moram nas ruas arborizadas entoam seus cantos como se soubessem que precisamos de música para nos consolar. O som acalma e ilude.
Pode-se, assim, olhar com alívio algum ponto da beleza da cidade, pela janela. Da minha se vê o Dois Irmãos. Granítico, firme, se oferecendo como defesa.
Ninguém se engana sobre a natureza da paz que se espalha nesta manhã de sábado. É paz armada. Tropas e blindados passaram em frente às casas e prédios dos moradores e foram cercar o inimigo. Helicópteros sobrevoaram nossos tetos. Tudo apenas confirma o que temos tentado ignorar, a escalada da guerra na cidade que gosta da alcunha de “maravilhosa", e se exibe ao sol hedonista, e se reúne aos milhares para ouvir e cantar o rock. Entre aflição e alheamento, entre negação e espanto, entre encantamento e medo vive-se no Rio de Janeiro.
O medo chegou ontem cedo quando a luta foi escalada pelos grupos que disputam o domínio do morro. Até que as tropas começaram seu movimento. As pessoas trancaram suas casas, as ruas ficaram vazias mais cedo, e o meu bairro ficou sem luz, a Gávea.
Estava no Centro do Rio e as notícias chegavam estranhas e longínquas como se ocorressem em outro país.
Assim se vive no Rio de Janeiro. Se a pessoa está um pouco distante do ponto do conflito, ainda que breve, fica no refúgio como se nada estivesse acontecendo. Mas há o momento em que temos que voltar para a casa a encarar a realidade.
A cidade desmorona à nossa volta. Fisicamente ela está de pé, mas uma cidade é o seu espírito. O do Rio é brincalhão e leve, gosta do prazer, e de andar ao sol, circula pelas ruas indiferente às proibições, subverte o estabelecido, lança modas. Tudo isso anda morrendo um pouco a cada dia.
O medo veio morar ao lado. Ele nos cerca e é estrangeiro a nós. Sabemos que ele está por aí e nos rendemos. Mas a rendição nega a natureza rebelde da cidade que nasceu para ser bela, jovem, e livre. O medo é o indesejável da vida, mas é nosso conhecido. Já esteve por aqui. Houve um tempo e tempo haverá no futuro em que falaremos dele pelas costas. Como se ele fosse a visita incômoda da qual conseguimos nos despedir.
Mas hoje, neste sábado que amanhece prometendo sol, ele está presente. Tenta ser contido pelos portões trancados, por janelas fechadas, por portas de duplo ferrolho, mas se esgueira pelas frestas e vem roubar a natureza displicente do sábado.
Na noite de sexta as TVs ofereceram a cena de moradores passando em meio às tropas com naturalidade. Eles se recolhiam depois do fim da semana de trabalho e, se as tropas estavam ali, melhor. Com mais segurança chegariam ao refúgio de cada um. Não havia espanto no rosto dos passantes entre soldados e armas. O extraordinário da guerra virou a rotina.
O poeta grego Konstantinos Kavafis ensina que a fuga é impossível. “Irei para outras terras, para outros mares, encontrarei uma cidade melhor que esta” descreve o poeta o sentimento geral.
Ele nos conta que o destino é ficar e que qualquer esforço que se faça está destinado ao fracasso. “A cidade te seguirá”, avisa, porque "nas mesmas ruas sem fim errarás, nos mesmos bairros te perderás". E mais: “Onde quer que vás reencontrarás esta cidade". Esta é, diz Kavafis, a nossa “mínima pátria".
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