segunda-feira, 20 de agosto de 2018

ALBERT CAMUS - sobre Envelhecer

Envelhecer  (frases soltas formando o texto)
ALBERT CAMUS

Resultado de imagem para envelhecer

“Envelhecer é o único meio de viver muito tempo.
A idade madura é aquela na qual ainda se é jovem, porém com muito mais esforço.
O que mais me atormenta em relação às tolices de minha juventude, não é havê-las cometido…é sim não poder voltar a cometê-las.

Envelhecer é passar da paixão para a compaixão.
Muitas pessoas não chegam aos oitenta porque perdem muito tempo tentando ficar nos quarenta.
Aos vinte anos reina o desejo, aos trinta reina a razão, aos quarenta o juízo.
O que não é belo aos vinte, forte aos trinta, rico aos quarenta, nem sábio aos cinquenta, nunca será nem belo, nem forte, nem rico, nem sábio…

Quando se passa dos sessenta, são poucas as coisas que nos parecem absurdas.
Os jovens pensam que os velhos são bobos; os velhos sabem que os jovens o são.
A maturidade do homem é voltar a encontrar a serenidade como aquela que se usufruía quando se era menino.
Nada passa mais depressa que os anos.

Quando era jovem dizia:
“verás quando tiver cinquenta anos”.
Tenho cinqüenta anos e não estou vendo nada.

Nos olhos dos jovens arde a chama, nos olhos dos velhos brilha a luz.
A iniciativa da juventude vale tanto a experiência dos velhos.
Sempre há um menino em todos os homens.

A cada idade lhe cai bem uma conduta diferente.
Os jovens andam em grupo, os adultos em pares e os velhos andam sós.
Feliz é quem foi jovem em sua juventude e feliz é quem foi sábio em sua velhice.
Todos desejamos chegar à velhice e todos negamos que tenhamos chegado.
Não entendo isso dos anos: que, todavia, é bom vivê-los, mas não tê-los.”
**

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Linda surpresa

Ouvindo música no youtube, me vi surpreendida e encantada com este poema como 'comentário' sobre a música de Fariborz Lachini, (NÃO É Chopin)  "Joie de vivre":

"Se donne à voir 
Se donne à écouter 
Se donne à se taire 
Se donne à toucher 
Du bord des yeux
Se donne à embrasser 
La vie
Se donne 
Lentement
Sans un bruit 
Plus haut que l'autre..."
*
ROUGE CERISE - (7 meses atrás)


***

A alma antiga

Da página APost , sem assinatura de autoria


Algumas pessoas parecem ser sábias demais para sua idade e muitas vezes preferem viver tranquilamente, enquanto observam a vida à distância. Essas pessoas pacíficas e estáveis são frequentemente consideradas detentoras de almas antigas. Acredita-se que elas tenham internalizado a sua visão do mundo de vidas passadas.

Almas velhas experimentam a vida de forma diferente das pessoas que as cercam e geram sentimentos de paz e calma em um mundo caótico. Sua natureza iluminada faz com que pensem e reajam de maneira diferente do restante de nós. 

Almas antigas têm amizades duradouras

Frequentemente, o detentor de uma alma antiga pode sentir que tem pouco em comum com pessoas da sua idade. Almas velhas não parecem estar interessadas nos tipos de atividades ou buscas daqueles com quem convivem. Em vez disso, a alma antiga vai procurar a companhia de um grupo seleto de poucas pessoas com as quais se identifica. Almas antigas procuram amigos com os quais se conectam por causa da afinidade entre seus espíritos.

Almas antigas seguem seu próprio caminho

O detentor de uma velha alma raramente parece fazer o que se espera dele. Ele parece dar pouco valor a buscas materialistas. Ele não está à procura de poder ou riqueza. Em vez disso, dirige-se em direção à sua própria autorrealização e à verdadeira felicidade. Essas almas antigas são frequentemente espiritualizadas, conectadas e instruídas.

Almas antigas se adaptam com facilidade

A alma velha é uma observadora e rapidamente se adapta a novas situações. Elas podem se achar excluídas e mal compreendidas nesta vida, mas não são anti-sociais. As almas antigas são naturalmente curiosas. Essa curiosidade frequentemente as leva a conversas mais significativas e menos superficiais. Se a alma velha não puder conduzir uma conversa para uma direção significativa, ela pode abruptamente encerrar a conversa e seguir seu caminho.

As almas velhas buscam conhecimento

O possuidor de uma velha alma é um intelectual. Para ele, o conhecimento traz sentimentos de felicidade e poder. Ele gosta de analisar todas as situações, esforçando-se para continuar aprendendo valiosas lições de vida. A alma antiga nem sempre tem que estar correta em suas crenças. Ela gosta de ter seus pensamentos e crenças desafiados pelos outros.

A alma antiga é espiritualizada

Almas antigas estão continuamente buscando a iluminação espiritual. Isso não precisa significar que se dediquem a uma religião. Elas podem estar em sintonia com muitas crenças e rituais antigos. Estão em busca de tradições e conexões espirituais que lhes tragam a verdadeira felicidade.

A alma antiga vê vida para além do presente

Aqueles que têm uma alma velha vivem sua vida sem complicá-la com detalhes do presente. Eles vêem a vida como uma série de consequências de uma série de ações. Em vez de se concentrarem só no dia de hoje, pensam mais à frente do que as pessoas que os rodeiam costumam fazer. Isso lhes dá uma perspectiva incomum e uma compreensão diferente de como o mundo funciona. A mente da alma antiga raramente se encontra obstruída por materialismo ou vaidade.

*            *            *

Resmungo...

Resmungo do dia, 'guenta' aí...

Não bastassem nossas questões individuais e/ou coletivas, os problemas da vida de cada um, nossos direitos e também nossas obrigações, tudo - tudo e qualquer coisa - está em exposição de maneira quase sempre afrontosa, quase sempre procurando discussão ferrenha em disputas que muitas vezes levam a lugar nenhum.

A moda da vez é a voz. E como as temos... estridentes, esganiçadas e por vezes, inaudíveis ou incompreensíveis.
Ah, e tem também a questão da visibilidade.
Ilusão pensar que esperneando, berrando, sempre contra ou a favor de qualquer coisa, seremos vistos, temidos, amados , admirados, respeitados ou não.

A ordem do dia na vida atual é a chamada 'polêmica'.
O verbo causar agora é intransitivo.
Haja clichê! E haja crochê.

Na minha opinião, as notícias mais irrelevantes tomam ares de foco de discussão séria, urgente, necessária, para ocupar os espaços realmente vazios de ideias.
Puro desgaste comentar, opinar, ‘meter o bico’ – ou que outras expressões lhes ocorram..

Há outras coisas, muitas outras, atormentando o dia de quem apenas deseja sossego, o que destrói tímidas tentativas com bandeiras brancas - pequenas parcelas de contribuição para a 'paz mundial'.

Vamos, gente, vamos ouvir música .
**
Sueli, 07 de agosto 2018


Beethoven Silence

'Do amor e outros demônios' - GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ

"Às vezes atribuímos ao demônio certas coisas que não entendemos, 
sem cuidar que podem ser coisas que não entendemos de Deus."


'Do Amor e Outros demônios'  é o primeiro livro de Gabriel García Marques que surgiu de uma reportagem de outubro de 1949, quando ele é enviado pelo seu jornal ao Convento de Santa Clara, onde antigos túmulos estavam sendo destruídos. De um deles saiu uma cabeleira cor de cobre de vinte e dois metros pertencente a uma jovem. Na lápide constava simplesmente o nome Sierva María de Todos los Àngeles, sem sobrenome nem pista de quem ela seria.
O escritor lembrou de uma lenda que a avó lhe contava sobre uma marquesa de doze anos que foi mordida por um cão e que fazia milagres. E é a partir dessa lenda que sai este romance.

Há muito mais demônios no livro do que qualquer outra coisa.

**
Do capítulo Um:
 “Um cachorro cinzento com uma estrela na testa irrompeu pelos becos do mercado no primeiro domingo de dezembro, revirou mesas de frituras, derrubou barraquinhas de índios e toldos de loterias, e de passagem mordeu quatro pessoas que se atravessaram no seu caminho. Três eram escravos negros. A outra foi Sierva Maria de Todos los Ángeles, filha única do marquês de Casalduero, que fora com uma empregada mulata comprar uma fieira de guizos para a festa de seus doze anos.”
*
“— O corpo humano não foi feito para os anos que a pessoa é capaz de viver...”  
(Fala do médico Abrenuncio)
*
“— Não se preocupe, minha branca — disse a escrava. — A senhora pode me proibir o que quiser, e eu obedeço. — E concluiu: — Só não pode proibir o que eu penso.”
(Fala da escrava Dominga de Adviento)
*
“— Tenho tanto medo de cavalos como de galinhas — disse.
— É pena, porque a falta de comunicação com os cavalos atrasou a humanidade — disse Abrenuncio. — Se conseguíssemos rompê-la, poderíamos fabricar o centauro.”
(Diálogo entre o marquês de Casalduero e o médico)
*
“(..)
O interior da casa, iluminado por duas janelas que davam para o mar alto, estava arrumado com um preciosismo minucioso de solteirão. Em todo o ambiente recendia uma fragrância de bálsamos que levava a crer na eficácia da medicina. Havia uma escrivaninha em ordem e uma cristaleira cheia de frascos de porcelana com rótulos em latim.
Relegada a um canto, estava a harpa medieval coberta de uma poeira dourada. O mais notável eram os livros, muitos em latim, com lombadas intrigantes. Havia-os em armários de vidro e em estantes abertas, ou postos no chão com muito cuidado, e o médico caminhava Pelos desfiladeiros de papel com a ligeireza de um rinoceronte entre rosas. O marquês estava assombrado com a quantidade.
— Tudo o que se sabe deve estar nesta sala disse.
— Os livros não servem para nada — disse Abrenuncio de bom humor. — Passei a vida curando doenças causadas por outros médicos com os remédios que dão.
Tirou um gato adormecido da poltrona principal, que era a sua, para que o marquês sentasse. Serviu-lhe um chá de ervas que ele mesmo preparou no fogareiro do laboratório, enquanto falava de suas experiências médicas, até se dar conta de que o marquês perdera o interesse. Assim era: ele se levantou de repente e lhe deu as costas, espiando pela janela o mar esquivo. Por fim, sempre de costas, encheu-se de coragem para começar.
— Licenciado — murmurou.
Abrenuncio não esperava o chamado.
— Sim? — Sob a gravidade do sigilo médico, e só para seu governo, confesso que é verdade o que falam — disse o marquês em tom solene. — O cachorro raivoso mordeu também minha filha.
Olhou o médico e se defrontou com uma alma em paz.
— Já sei — disse. — E suponho que é por isso que veio tão cedo.
— Isso mesmo — disse o marquês. E repetiu a pergunta feita a respeito do mordido do hospital: — Que podemos fazer? 
Em vez da resposta brutal do dia anterior, Abrenuncio pediu para ver Sierva María.. Era isso que o marquês queria dele. Estavam pois de acordo, e a carruagem os esperava na porta.
(...)
Ao contrário do que seria de esperar, a menina se submeteu sem resistência a uma exploração minuciosa de seu corpo, com a curiosidade de quem estivesse observando um brinquedo de dar corda.
— Nós médicos vemos com as mãos — disse Abrenuncio.
A menina, achando graça, sorriu pela primeira vez. Sua boa saúde saltavaaos olhos.
(...)
Enfrentou com bom ânimo e pleno domínio o interrogatório insidioso, e seria preciso conhecê-la muito para descobrir que nenhuma resposta sua era verdade.
Só esteve tensa quando o médico encontrou a cicatriz ínfima no tornozelo. A astúcia de Abrenuncio se antecipou: — Caíste? A menina afirmou sem pestanejar: — Do balanço.
O médico começou a conversar consigo mesmo em latim. O marquês o interrompeu: — Diga-me isso em língua de gente.
— Não é com o senhor — disse Abrenuncio. Estou pensando em baixolatim.
Sierva María estava encantada com as artimanhas, de Abrenuncio, até que ele lhe colou a orelha ao peito para auscultá-la. 
O coração da menina batia aos saltos enlouquecidos, e a pele soltou um orvalho lívido e glacial, com um recôndito cheiro de cebola. 
Ao terminar, o médico lhe deu uma palmadinha carinhosa na face.
— És muito valente — disse.
A sós com o marquês, comentou que a menina sabia que o cachorro tinha raiva. O marquês não entendeu.
— Ela lhe disse muitas petas, mas essa, não.
— Não foi ela, senhor. Foi aquele coração, parecia uma rãzinha no cativeiro.
O marquês se demorou no relato de outras mentiras surpreendentes da filha, não sem certo orgulho paterno.
— Talvez vá ser poeta — disse.
Abrenuncio não admitiu que a mentira fosse uma condição das artes: — Quanto mais transparente é uma escrita, mais se vê a poesia.
A única coisa que não pôde interpretar foi o cheiro de cebola no suor da menina. Como desconhecia qualquer relação entre um cheiro determinado e a raiva, descartou-o como sintoma. 
Caridad del Cobre revelou mais tarde ao marquês que Sierva Maria se entregara em segredo às ciências dos escravos, que a faziam mastigar emplastro de manajá, e a trancavam nua na despensa de cebolas para afastar o malefício do cachorro.
Abrenuncio não suavizou o mais insignificante pormenor da raiva.
— Os primeiros ataques são tanto mais graves e mais rápidos quanto mais profunda for a mordida e quanto mais perto estiver do cérebro — disse. Lembrou o caso de um paciente que morreu ao cabo de cinco anos, mas ficou a dúvida de que tivesse sofrido um contágio posterior, não advertido. A cicatrização rápida não queria dizer nada: depois de um tempo imprevisível, a cicatriz podia inchar, abrir-se de novo e supurar. A agonia chegava a ser tão espantosa que era melhor a morte. 
Só restava então apelar para o hospital do Amor de Deus, onde havia senegaleses hábeis no tratar de hereges e de energúmenos enfurecidos. A não ser assim, o marquês em pessoa teria de assumir a condenação de manter a menina amarrada à cama até morrer.”
**
Do capítulo Dois:
“Nenhum louco é louco para quem aceita as razões dele.”
*
... já de saída, (o médico Abrenuncio) parou junto à rede do marquês e precisou o prognóstico: — A senhora marquesa morrerá o mais tardar no dia 15 de setembro, se antes não se pendurar numa viga.
Sem se alterar, o marquês disse: — O ruim é que o dia 15 de setembro ainda está longe”
*
“Ela lhe perguntou num daqueles dias se era verdade, como diziam as canções, que o amor tudo podia.
— É verdade — respondeu ele —, mas será melhor não acreditares.”
(Diálogo entre  pai - o marquês – e a filha Sierva Maria)
**
Do Capítulo Três
“A ciência não me deu meios para lhe dizer mais nada — replicou o médico no mesmo tom ácido. — Mas se não acredita em mim, ainda lhe resta um recurso: confie em Deus.”
*
“— Quer dizer que recuperou a fé — disse Abrenuncio.
— Nunca se deixa de crer por completo — disse o marquês . — A dúvida persiste.”
*
“Abrenuncio o fez sentar diante dele, e os dois se entregaram ao vício da conversação, enquanto uma tempestade apocalíptica convulsionava o mar. O médico fez uma exposição erudita e inteligente sobre a raiva desde a origem da humanidade, sobre seus estragos impunes e a incapacidade milenar da ciência médica para impedi-los. Deu exemplos lamentáveis de como sempre fora confundida com a possessão demoníaca, assim como certas formas de loucura e outras perturbações do espírito. 
Quanto a Sierva María, depois de tantas semanas, não parecia provável que a contraísse. O único perigo, concluiu Abrenuncio, era que morresse, como tantos outros, em consequência da crueldade dos exorcismos.
A última frase pareceu a Delaura um exagero próprio da medicina medieval, mas ele não discutiu, porque servia bem à sua argumentação teológica de que a menina não estava possuída.” (...)
— A verdade é que nem sei ao certo por que vim — disse Delaura. — A não ser que essa menina me tenha sido imposta pelo Espírito Santo para pôr a prova minha fé.
Bastou dizê-lo para se libertar do nó de suspiros que o oprimia.
Abrenuncio olhou-o nos olhos, até o fundo da alma, e percebeu que estava quase a chorar.
— Não se atormente à toa — disse em tom tranquilizador. — Talvez só tenha vindo porque precisava falar nela.
Delaura sentiu-se nu. Levantou-se, procurou o rumo da porta e só não fugiu em disparada porque estava meio despido. 
Abrenuncio o ajudou a vestir a roupa ainda molhada, enquanto tratava de fazê-lo ficar para continuar a conversa.
— Com o senhor, conversaria sem parar até o próximo século — disse.”
(Abrenuncio, o médico; Delaura, o exorcista)
*
(Delaura vai à cela onde está Sierva Maria de Los Angeles)
(...) Então Delaura assistiu ao espetáculo pavoroso de uma verdadeira energúmena. A cabeleira de Sierva María se encrespou com vida própria, como as serpentes da Medusa, e de sua boca saiu uma baba verde, uma saraivada de impropérios em línguas de idólatras.
Delaura brandiu o crucifixo, aproximou-o da cara dela e gritou aterrado:
— Sai daí, sejas tu quem fores, besta dos infernos Seus gritos estimularam os da menina, que estava a ponto de romper as fivelas das correias. A guardiã acudiu
assustada e forcejou para dominá-la, mas só Martina o conseguiu com seus
modos celestiais.
Delaura fugiu.”
(...)
“Fugiu para a biblioteca mas não conseguiu ler. Rezou com a fé exacerbada, cantou a canção da tiorba, chorou com lágrimas de óleo ardente que lhe abrasavam as entranhas. 
Abriu a maleta de Sierva María e pôs as coisas uma a uma em cima da mesa. Conheceu-as, cheirou-as com um desejo ávido do corpo, amou-as e falou com elas em hexâmetros obscenos, até que não pôde mais. 
Então desnudou o torso, tirou da gaveta da mesa de trabalho a disciplina de ferro que nunca ousara tocar e começou a flagelar-se com um ódio insaciável, que não lhe daria trégua até extirpar de suas entranhas o último vestígio de Sierva Maria.
O bispo, que tinha ficado à espera dele, encontrou-o revolvendo-se num lamaçal de sangue e lágrimas.
— É o demônio, meu pai — disse Delaura. — O mais terrível de todos.”
**
Do Capítulo Quatro:
“Na cela de Sierva María, o ar ainda estava áspero por causa da cal viva e do ranço do alcatrão, mas havia uma ordem nova. 
Mal a guardiã abriu a porta, a vice-rainha se sentiu enfeitiçada por um sopro glacial. 
Sierva María estava’sentada, a bata puída e os chinelos sujos, e costurava devagar num canto
iluminado por sua própria luz. Não ergueu os olhos até que a vice-rainha a cumprimenttou. 
Logo percebeu no olhar da menina a força irresistível de umarevelação.
— Santíssimo Sacramento — murmurou, dando um passo para dentro da cela.
— Cuidado — disse-lhe a abadessa ao ouvido. É como uma onça.
*
"A cela estava diferente graças aos dons de persuasão dos vice-reis, que na visita de despedida tinham convencido a abadessa das boas razões do bispo. O colchão era novo, os lençóis de linho, e os travesseiros de penas, e se haviam posto utensílios para o asseio cotidiano e o banho de corpo. 
A luz do mar entrava pela janela sem cruzetas e resplandecia nas paredes recém-caiadas."
*
Do Capítulo Cinco
(Visita de Abrenuncio ao padre Cayetano Delaura, este cuidndo de leprosos, cumprindo sentença dada pela Igreja)
“— Gostaria de saber por que é tão amável comigo – (disse Delaura)
— Porque nós ateus não conseguimos viver sem os padres — disse Abrenuncio. — Os pacientes nos confiam seus corpos, mas não suas almas, e nós vivemos como os diabos, tratando de disputá-las com Deus. 
— Isso não combina com as suas crenças — disse Cayetano  (...)
*
“Cayetano aprendeu depressa que um grande poder não se perde pela metade. As mesmas pessoas que antes disputavam a sua intimidade agora fugiam dele como de um leproso. 
Seus amigos das artes e letras mundanas se afastaram para não ter problemas com o Santo Ofício.”
*
"Quando paro a contemplar o meu estado 
e ver os passos por onde me trouxeste ... 
eu acabarei pois me entreguei sem arte 
a quem me saberá perder e acabar" 
(do último dos quarenta sonetos do cavaleiro do amor e de armas, Dom Garcilaso de La Vega)
*
(O médico Abrenuncio fala ao padre Cayetano Delaura):
“— Vocês têm uma religião da morte que lhes infunde coragem e felicidade para enfrentá-la disse. — Eu não: acredito que a única coisa essencial é estar vivo.”
*

Primorosa descrição de ambiente
“...era o ambiente mais espaçoso da casa do bispo, sem uma só janela, e as paredes cobertas por armários de mogno envidraçados com livros numerosos e em ordem. 
No centro ficava uma mesa grande com cartas de marear, um astrolábio e outros instrumentos de navegação, e um globo terrestre com acréscimos e emendas feitas a mão por sucessivos cartógrafos à medida que o mundo ia aumentando. 
Havia no fundo uma rústica mesa de trabalho com o tinteiro, o aparador de penas, as penas de peru nativo para escrever, o pó de secar tinta e uma jarra com um cravo murcho. 
Todo o ambiente estava em penumbra, e cheirava a papel em repouso, à fresca e ao sossego de uma floresta.
Ao fundo do salão, num espaço mais reduzido, havia umas estantes fechadas com portas de tábuas comuns. Era a prisão dos livros proibidos segundo os expurgatórios da Santa Inquisição, por tratarem de 'matérias profanas e fabulosas', e de histórias fictícias. A ela ninguém tinha acesso, salvo Cayetano Delaura, por licença pontifícia para explorar os abismos das letras extraviadas. (...)”


*            *            *