terça-feira, 7 de agosto de 2018

'Do amor e outros demônios' - GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ

"Às vezes atribuímos ao demônio certas coisas que não entendemos, 
sem cuidar que podem ser coisas que não entendemos de Deus."


'Do Amor e Outros demônios'  é o primeiro livro de Gabriel García Marques que surgiu de uma reportagem de outubro de 1949, quando ele é enviado pelo seu jornal ao Convento de Santa Clara, onde antigos túmulos estavam sendo destruídos. De um deles saiu uma cabeleira cor de cobre de vinte e dois metros pertencente a uma jovem. Na lápide constava simplesmente o nome Sierva María de Todos los Àngeles, sem sobrenome nem pista de quem ela seria.
O escritor lembrou de uma lenda que a avó lhe contava sobre uma marquesa de doze anos que foi mordida por um cão e que fazia milagres. E é a partir dessa lenda que sai este romance.

Há muito mais demônios no livro do que qualquer outra coisa.

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Do capítulo Um:
 “Um cachorro cinzento com uma estrela na testa irrompeu pelos becos do mercado no primeiro domingo de dezembro, revirou mesas de frituras, derrubou barraquinhas de índios e toldos de loterias, e de passagem mordeu quatro pessoas que se atravessaram no seu caminho. Três eram escravos negros. A outra foi Sierva Maria de Todos los Ángeles, filha única do marquês de Casalduero, que fora com uma empregada mulata comprar uma fieira de guizos para a festa de seus doze anos.”
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“— O corpo humano não foi feito para os anos que a pessoa é capaz de viver...”  
(Fala do médico Abrenuncio)
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“— Não se preocupe, minha branca — disse a escrava. — A senhora pode me proibir o que quiser, e eu obedeço. — E concluiu: — Só não pode proibir o que eu penso.”
(Fala da escrava Dominga de Adviento)
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“— Tenho tanto medo de cavalos como de galinhas — disse.
— É pena, porque a falta de comunicação com os cavalos atrasou a humanidade — disse Abrenuncio. — Se conseguíssemos rompê-la, poderíamos fabricar o centauro.”
(Diálogo entre o marquês de Casalduero e o médico)
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“(..)
O interior da casa, iluminado por duas janelas que davam para o mar alto, estava arrumado com um preciosismo minucioso de solteirão. Em todo o ambiente recendia uma fragrância de bálsamos que levava a crer na eficácia da medicina. Havia uma escrivaninha em ordem e uma cristaleira cheia de frascos de porcelana com rótulos em latim.
Relegada a um canto, estava a harpa medieval coberta de uma poeira dourada. O mais notável eram os livros, muitos em latim, com lombadas intrigantes. Havia-os em armários de vidro e em estantes abertas, ou postos no chão com muito cuidado, e o médico caminhava Pelos desfiladeiros de papel com a ligeireza de um rinoceronte entre rosas. O marquês estava assombrado com a quantidade.
— Tudo o que se sabe deve estar nesta sala disse.
— Os livros não servem para nada — disse Abrenuncio de bom humor. — Passei a vida curando doenças causadas por outros médicos com os remédios que dão.
Tirou um gato adormecido da poltrona principal, que era a sua, para que o marquês sentasse. Serviu-lhe um chá de ervas que ele mesmo preparou no fogareiro do laboratório, enquanto falava de suas experiências médicas, até se dar conta de que o marquês perdera o interesse. Assim era: ele se levantou de repente e lhe deu as costas, espiando pela janela o mar esquivo. Por fim, sempre de costas, encheu-se de coragem para começar.
— Licenciado — murmurou.
Abrenuncio não esperava o chamado.
— Sim? — Sob a gravidade do sigilo médico, e só para seu governo, confesso que é verdade o que falam — disse o marquês em tom solene. — O cachorro raivoso mordeu também minha filha.
Olhou o médico e se defrontou com uma alma em paz.
— Já sei — disse. — E suponho que é por isso que veio tão cedo.
— Isso mesmo — disse o marquês. E repetiu a pergunta feita a respeito do mordido do hospital: — Que podemos fazer? 
Em vez da resposta brutal do dia anterior, Abrenuncio pediu para ver Sierva María.. Era isso que o marquês queria dele. Estavam pois de acordo, e a carruagem os esperava na porta.
(...)
Ao contrário do que seria de esperar, a menina se submeteu sem resistência a uma exploração minuciosa de seu corpo, com a curiosidade de quem estivesse observando um brinquedo de dar corda.
— Nós médicos vemos com as mãos — disse Abrenuncio.
A menina, achando graça, sorriu pela primeira vez. Sua boa saúde saltavaaos olhos.
(...)
Enfrentou com bom ânimo e pleno domínio o interrogatório insidioso, e seria preciso conhecê-la muito para descobrir que nenhuma resposta sua era verdade.
Só esteve tensa quando o médico encontrou a cicatriz ínfima no tornozelo. A astúcia de Abrenuncio se antecipou: — Caíste? A menina afirmou sem pestanejar: — Do balanço.
O médico começou a conversar consigo mesmo em latim. O marquês o interrompeu: — Diga-me isso em língua de gente.
— Não é com o senhor — disse Abrenuncio. Estou pensando em baixolatim.
Sierva María estava encantada com as artimanhas, de Abrenuncio, até que ele lhe colou a orelha ao peito para auscultá-la. 
O coração da menina batia aos saltos enlouquecidos, e a pele soltou um orvalho lívido e glacial, com um recôndito cheiro de cebola. 
Ao terminar, o médico lhe deu uma palmadinha carinhosa na face.
— És muito valente — disse.
A sós com o marquês, comentou que a menina sabia que o cachorro tinha raiva. O marquês não entendeu.
— Ela lhe disse muitas petas, mas essa, não.
— Não foi ela, senhor. Foi aquele coração, parecia uma rãzinha no cativeiro.
O marquês se demorou no relato de outras mentiras surpreendentes da filha, não sem certo orgulho paterno.
— Talvez vá ser poeta — disse.
Abrenuncio não admitiu que a mentira fosse uma condição das artes: — Quanto mais transparente é uma escrita, mais se vê a poesia.
A única coisa que não pôde interpretar foi o cheiro de cebola no suor da menina. Como desconhecia qualquer relação entre um cheiro determinado e a raiva, descartou-o como sintoma. 
Caridad del Cobre revelou mais tarde ao marquês que Sierva Maria se entregara em segredo às ciências dos escravos, que a faziam mastigar emplastro de manajá, e a trancavam nua na despensa de cebolas para afastar o malefício do cachorro.
Abrenuncio não suavizou o mais insignificante pormenor da raiva.
— Os primeiros ataques são tanto mais graves e mais rápidos quanto mais profunda for a mordida e quanto mais perto estiver do cérebro — disse. Lembrou o caso de um paciente que morreu ao cabo de cinco anos, mas ficou a dúvida de que tivesse sofrido um contágio posterior, não advertido. A cicatrização rápida não queria dizer nada: depois de um tempo imprevisível, a cicatriz podia inchar, abrir-se de novo e supurar. A agonia chegava a ser tão espantosa que era melhor a morte. 
Só restava então apelar para o hospital do Amor de Deus, onde havia senegaleses hábeis no tratar de hereges e de energúmenos enfurecidos. A não ser assim, o marquês em pessoa teria de assumir a condenação de manter a menina amarrada à cama até morrer.”
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Do capítulo Dois:
“Nenhum louco é louco para quem aceita as razões dele.”
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... já de saída, (o médico Abrenuncio) parou junto à rede do marquês e precisou o prognóstico: — A senhora marquesa morrerá o mais tardar no dia 15 de setembro, se antes não se pendurar numa viga.
Sem se alterar, o marquês disse: — O ruim é que o dia 15 de setembro ainda está longe”
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“Ela lhe perguntou num daqueles dias se era verdade, como diziam as canções, que o amor tudo podia.
— É verdade — respondeu ele —, mas será melhor não acreditares.”
(Diálogo entre  pai - o marquês – e a filha Sierva Maria)
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Do Capítulo Três
“A ciência não me deu meios para lhe dizer mais nada — replicou o médico no mesmo tom ácido. — Mas se não acredita em mim, ainda lhe resta um recurso: confie em Deus.”
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“— Quer dizer que recuperou a fé — disse Abrenuncio.
— Nunca se deixa de crer por completo — disse o marquês . — A dúvida persiste.”
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“Abrenuncio o fez sentar diante dele, e os dois se entregaram ao vício da conversação, enquanto uma tempestade apocalíptica convulsionava o mar. O médico fez uma exposição erudita e inteligente sobre a raiva desde a origem da humanidade, sobre seus estragos impunes e a incapacidade milenar da ciência médica para impedi-los. Deu exemplos lamentáveis de como sempre fora confundida com a possessão demoníaca, assim como certas formas de loucura e outras perturbações do espírito. 
Quanto a Sierva María, depois de tantas semanas, não parecia provável que a contraísse. O único perigo, concluiu Abrenuncio, era que morresse, como tantos outros, em consequência da crueldade dos exorcismos.
A última frase pareceu a Delaura um exagero próprio da medicina medieval, mas ele não discutiu, porque servia bem à sua argumentação teológica de que a menina não estava possuída.” (...)
— A verdade é que nem sei ao certo por que vim — disse Delaura. — A não ser que essa menina me tenha sido imposta pelo Espírito Santo para pôr a prova minha fé.
Bastou dizê-lo para se libertar do nó de suspiros que o oprimia.
Abrenuncio olhou-o nos olhos, até o fundo da alma, e percebeu que estava quase a chorar.
— Não se atormente à toa — disse em tom tranquilizador. — Talvez só tenha vindo porque precisava falar nela.
Delaura sentiu-se nu. Levantou-se, procurou o rumo da porta e só não fugiu em disparada porque estava meio despido. 
Abrenuncio o ajudou a vestir a roupa ainda molhada, enquanto tratava de fazê-lo ficar para continuar a conversa.
— Com o senhor, conversaria sem parar até o próximo século — disse.”
(Abrenuncio, o médico; Delaura, o exorcista)
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(Delaura vai à cela onde está Sierva Maria de Los Angeles)
(...) Então Delaura assistiu ao espetáculo pavoroso de uma verdadeira energúmena. A cabeleira de Sierva María se encrespou com vida própria, como as serpentes da Medusa, e de sua boca saiu uma baba verde, uma saraivada de impropérios em línguas de idólatras.
Delaura brandiu o crucifixo, aproximou-o da cara dela e gritou aterrado:
— Sai daí, sejas tu quem fores, besta dos infernos Seus gritos estimularam os da menina, que estava a ponto de romper as fivelas das correias. A guardiã acudiu
assustada e forcejou para dominá-la, mas só Martina o conseguiu com seus
modos celestiais.
Delaura fugiu.”
(...)
“Fugiu para a biblioteca mas não conseguiu ler. Rezou com a fé exacerbada, cantou a canção da tiorba, chorou com lágrimas de óleo ardente que lhe abrasavam as entranhas. 
Abriu a maleta de Sierva María e pôs as coisas uma a uma em cima da mesa. Conheceu-as, cheirou-as com um desejo ávido do corpo, amou-as e falou com elas em hexâmetros obscenos, até que não pôde mais. 
Então desnudou o torso, tirou da gaveta da mesa de trabalho a disciplina de ferro que nunca ousara tocar e começou a flagelar-se com um ódio insaciável, que não lhe daria trégua até extirpar de suas entranhas o último vestígio de Sierva Maria.
O bispo, que tinha ficado à espera dele, encontrou-o revolvendo-se num lamaçal de sangue e lágrimas.
— É o demônio, meu pai — disse Delaura. — O mais terrível de todos.”
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Do Capítulo Quatro:
“Na cela de Sierva María, o ar ainda estava áspero por causa da cal viva e do ranço do alcatrão, mas havia uma ordem nova. 
Mal a guardiã abriu a porta, a vice-rainha se sentiu enfeitiçada por um sopro glacial. 
Sierva María estava’sentada, a bata puída e os chinelos sujos, e costurava devagar num canto
iluminado por sua própria luz. Não ergueu os olhos até que a vice-rainha a cumprimenttou. 
Logo percebeu no olhar da menina a força irresistível de umarevelação.
— Santíssimo Sacramento — murmurou, dando um passo para dentro da cela.
— Cuidado — disse-lhe a abadessa ao ouvido. É como uma onça.
*
"A cela estava diferente graças aos dons de persuasão dos vice-reis, que na visita de despedida tinham convencido a abadessa das boas razões do bispo. O colchão era novo, os lençóis de linho, e os travesseiros de penas, e se haviam posto utensílios para o asseio cotidiano e o banho de corpo. 
A luz do mar entrava pela janela sem cruzetas e resplandecia nas paredes recém-caiadas."
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Do Capítulo Cinco
(Visita de Abrenuncio ao padre Cayetano Delaura, este cuidndo de leprosos, cumprindo sentença dada pela Igreja)
“— Gostaria de saber por que é tão amável comigo – (disse Delaura)
— Porque nós ateus não conseguimos viver sem os padres — disse Abrenuncio. — Os pacientes nos confiam seus corpos, mas não suas almas, e nós vivemos como os diabos, tratando de disputá-las com Deus. 
— Isso não combina com as suas crenças — disse Cayetano  (...)
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“Cayetano aprendeu depressa que um grande poder não se perde pela metade. As mesmas pessoas que antes disputavam a sua intimidade agora fugiam dele como de um leproso. 
Seus amigos das artes e letras mundanas se afastaram para não ter problemas com o Santo Ofício.”
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"Quando paro a contemplar o meu estado 
e ver os passos por onde me trouxeste ... 
eu acabarei pois me entreguei sem arte 
a quem me saberá perder e acabar" 
(do último dos quarenta sonetos do cavaleiro do amor e de armas, Dom Garcilaso de La Vega)
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(O médico Abrenuncio fala ao padre Cayetano Delaura):
“— Vocês têm uma religião da morte que lhes infunde coragem e felicidade para enfrentá-la disse. — Eu não: acredito que a única coisa essencial é estar vivo.”
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Primorosa descrição de ambiente
“...era o ambiente mais espaçoso da casa do bispo, sem uma só janela, e as paredes cobertas por armários de mogno envidraçados com livros numerosos e em ordem. 
No centro ficava uma mesa grande com cartas de marear, um astrolábio e outros instrumentos de navegação, e um globo terrestre com acréscimos e emendas feitas a mão por sucessivos cartógrafos à medida que o mundo ia aumentando. 
Havia no fundo uma rústica mesa de trabalho com o tinteiro, o aparador de penas, as penas de peru nativo para escrever, o pó de secar tinta e uma jarra com um cravo murcho. 
Todo o ambiente estava em penumbra, e cheirava a papel em repouso, à fresca e ao sossego de uma floresta.
Ao fundo do salão, num espaço mais reduzido, havia umas estantes fechadas com portas de tábuas comuns. Era a prisão dos livros proibidos segundo os expurgatórios da Santa Inquisição, por tratarem de 'matérias profanas e fabulosas', e de histórias fictícias. A ela ninguém tinha acesso, salvo Cayetano Delaura, por licença pontifícia para explorar os abismos das letras extraviadas. (...)”


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