terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A vida é dura... - Eberth Vêncio em 'Revista Bula'

A vida é dura e nos reserva incontáveis caneladas
Eberth Vêncio - em 'Revista Bula'

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Não posso dizer que sinta orgulho das minhas metas pessoais para o ano novo. Vender o carro. Acordar mais cedo. Trabalhar além das 44 horas semanais regulamentares. Pagar dívidas. Juntar dinheiro. Sinto um especial prazer em quitar uma duplicata. 
Quem é que me explica isso? 
Meu analista está operando na bolsa. Talvez, eu opere o saco com o Doutor Jivago. 
Pensando bem, é um privilégio estar com saúde suficiente para defender uns trampos e ir tocando em frente até quando o governo quiser. Trabalhar até morrer. Então, é isso. 
A vida não está para poesia. Provavelmente, nunca esteve. Mesmo assim, uma cena inspiradora me afeta: um sujeito passa por mim saltitando, socando o ar. É como se fizesse um gol depois de abrir o envelope e se deparar com a conclusão do laudo laboratorial, impresso em letras garrafais: NEGATIVO. Este sabe viver. Se não sabe, acaba de ganhar uma nova oportunidade.

Rango na lanchonete. Muvuca de gente. Engulo sapos pra variar. Um guri dos mais minúsculos aponta-me o polegar direito para cima enquanto suga um sorvete. “Tudo joia, moço?”. Devolvo a mímica com um econômico sorriso no rosto. É o máximo que consigo no final do mês. 

Olhando com cuidado, parece, sim, restar vestígios de positividade no ar. 
Uma mulher jovem e atraente, uma típica personagem daqueles filmes noir, repreende o pirralho por ter lambrecado a roupa com sorvete derretido. “Dá de mamar pra ele”, eu penso que adoraria ver as suas tetas. Existe aí uma treta. As mães pensam que sabem tudo, as mães pensam que podem tudo, mas, elas não sabem nada, as mães não podem quase nada além de serem reverenciadas pelos filhos até os ossos. 
A vida é dura e nos reserva incontáveis caneladas.

Por exemplo: não sou um bom exemplo de ser humano. Perdi os óculos. Perdi a fé. 

Alguns bons amigos perderam os empregos e agora integram uma vergonhosa cambada com milhões de desempregados. Muitos querem se mudar do país, quem sabe, para Portugal, a nossa pátria mater. Puta que o pariu! Quisera conhecer Lisboa, Coimbra e a Cidade do Porto. Cheiro de bacalhau é foda. Prefiro picanha. Não quero me mandar. Eu preciso mesmo é me mudar, mas, me mudar por dentro, colocando os pingos nos “is”, os rancores nos cofres do esquecimento e os pensamentos no lugar.

Lucubro. Sei que divagar me leva longe. Tenho pressa. Tanta pressa embota os meus sentidos. 

Não tenho sentido muito mais do que saudades do moço que um dia eu fui, apesar da frivolidade, da ingenuidade e da típica prepotência juvenil. Prefiro um mancebo arrogante do que um velho cínico. O que seria do mundo sem a intrepidez dos jovens? Nada além de um traste entristecido esperando ser aceito no céu. Houve um tempo em que eu quis mais. Eu esperava mais de Deus, pra se ter uma ideia.

Já tive ambições maiores do que conseguir acertar as contas com o Tesouro Nacional. É a quarta vez no dia que me convidam para um bolão de loteria. Mas, que porra é essa? Que diabo de gente chata é essa que sonha em ser milionária para a vida fazer sentido? Sinto comunicar que rico é aquele que encontra grandeza nas miudezas da vida. Quase ninguém concorda. A não ser, nos últimos estertores, quando prestes a realizar “a grande travessia”. Grande merda. Acho isso tão triste como um tango. É por isso que eu não danço. Mas, eu escrevo. Como se fosse uma espécie de Manoel de Barros com dor no ciático.


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