"Sonata de Outono" - quando o cinema sufoca e faz pensar
Michele Ramos - "Obvious" Magazine
Um filme que fará você repensar nas relações entre pais e filhos.
Nas cicatrizes que ninguém vê.
Será que algum dia o cordão umbilical é realmente cortado?
O brilhantismo de Ingmar Bergman presente neste enredo gera conflitos entre o espectador e a sua própria subjetividade. Como todos do diretor, aliás.
“Sonata de Outono” (1978) conta com um roteiro sensacional, uma bela fotografia, closes que intensificam o brilhantismo das atuações.
O filme é sobre a relação entre mãe e filha interpretadas pelas atrizes Liv Ullmann e Ingrid Bergman.
Elas não se viam há sete anos, apesar dos constantes convites de Eva (Liv Ullmann)para que sua mãe a visitasse.
Ambas demonstram-se ansiosas com o reencontro e perceptivelmente desconfortáveis na presença uma da outra.
A relação, que desde a infância sempre foi fria e distante, deixou marcas psicológicas profundas na personalidade de Eva, que se considerava incapaz de amar, como diz o trecho de um livro que escreveu:
“É preciso aprender a viver. Eu treino todos os dias. Meu maior obstáculo é não saber quem sou. Vou tropeçando, às cegas. Se alguém me amar do jeito que eu sou, talvez eu finalmente arrisque a olhar pra mim mesma. Pra mim, essa possibilidade é bastante remota.”
Os mecanismos sociais estão sempre exaltando as relações entre pais e filhos... o quão maravilhosas são ou devem ser, o quão amorosas devem parecer, contudo, essa corrente invisível que é estabelecida no nascimento e que instaura laços profundos na vida nem sempre é tão saudável assim.
“É como um fantasma caindo em cima de você, quando você abre a porta do berçário, tendo esquecido que é o berçário”.
Assim, no longa, uma mãe (Charlotte) que não tinha habilidades maternas e que não se permitia sentir, deposita na filha a responsabilidade do amor que queria receber, mas que não era capaz de dar.
Charlotte era pianista e vivia viajando, fato que causava em Eva, ainda criança, uma pequena morte a cada partida e a cada chegada da mãe.
"Eu não sei o que eu odiava mais, se era quando você viajava ou quando estava em casa”.
Em uma determinada cena, na qual Charlotte (Ingrid Bergman) ensina o conceito de uma partitura de piano à Eva, notamos expressões de sentimentos há anos reprimidos, representados por uma sonata:
“Olha os primeiros acordes, há dor, mas sem parecer”, diz Charlotte.
Assim como a relação das duas, uma relação de aparências, maquiada pela convenção social que dita que mãe e filha devem se amar apesar de qualquer coisa.
“Eu não podia odiá-la e meu ódio se tornou um medo insano”, diz Eva.
Em certo momento do filme, Eva fala sobre a morte de seu filho que se afogou antes de completar quatro anos.
Ela descreve o lugar para onde imagina que seu filho foi como um espaço de “sentimentos livres”. Diferentemente do lugar terreno em que se encontra, no qual os sentimentos são reprimidos e calados.
O existencialismo de Bergman já nos é muito conhecido de seus filmes que são sempre repletos de questionamentos sobre a vida, a morte, a religião, as relações entre as pessoas. O diretor questiona nossa pretensa liberdade enquanto ser social e provoca nossa subjetividade.
“Deve haver inúmeras realidades, não só esta que percebemos com nossos sentidos embotados, mas um amontoado de realidades se sobrepondo umas às outras. É medo e presunção acreditar em limites. Não existem limites, nem para os pensamentos, nem para os sentimentos. É a ansiedade que impõe limites”.
A filha, num certo momento, não consegue mais se calar e expurga seus sentimentos à mãe, num dos diálogos mais intensos e primorosos do cinema.
“Tudo é possível e tudo se faz por amor e preocupação. As cicatrizes da mãe são passadas para a filha? As falhas da mãe são pagas pela filha. A infelicidade da mãe é a infelicidade da filha. Será que a infelicidade da filha é o triunfo da mãe? Mãe, será que a minha tristeza é a sua satisfação secreta?”
Eva diz à Charlotte:
“Eu não confiava nas suas palavras. Elas não expressavam o que seus olhos diziam”.
Sentimento de infância que se reflete na relação dela com o marido que não sabia como dizer que a amava de forma que ela acreditasse.
“Será assim com todo mundo? Ou será que alguns têm mais talento pra viver que outros? Ou será que alguns jamais vivem, mas apenas existem?”
Somos todos analfabetos sentimentais?
Os pais deveriam saber viver melhor que os filhos, mas são apenas seres humanos também.
“Eu não queria ser sua mãe. Eu queria que você soubesse que sou tão indefesa quanto você”, diz Charlotte à Eva.
Como toda obra prima de Bergman, “Sonata de Outono” é um filme para ser assistido e reassistido para que novas reflexões venham à tona a cada momento.
Em “Manhattan”, Woody Allen afirma “Bergman é o único gênio do cinema”.
Podemos destacar outros gênios hoje em dia, mas Bergman continua sendo o maior e melhor desbravador da alma humana. E a deixou nua como ninguém fez.
“O sentido da realidade é uma questão de talento. Muitas pessoas não têm talento, mas vivem mesmo assim”.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário