segunda-feira, 27 de abril de 2015

Pensamentos expostos



De acordo com a publicação anterior neste blog (Antroposofia),  estou no último setênio da vida e, mesmo antes de ler o artigo, eu já vinha pensando seriamente no tempo que tenho para partir deixando "lavrado o campo,  a casa limpa, a mesa posta,  com cada coisa em seu lugar", como diz Manuel Bandeira em seu lindo poema "Consoada".
Além da metáfora - belíssima, aliás - ando precisando mesmo, de verdade, organizar melhor muita coisa pessoal (papéis, fotografias, objetos, roupas) numa tentativa de aliviar o trabalho da família.
Pode parecer morbidez mas trata-se apenas da realidade pegando forte.

Sempre tive a mania de guardar 'coisas' (não me considero acumuladora, pois sou seletiva e organizada), mas confesso, uma espécie de guardiã do que acho importante na vida familiar. Assim, encontrarão lembranças inimagináveis...rsrsrs
Explico: tenho o cartãozinho-convite para o aniversário de 1º ano de vida da minha primeira filha que hoje está com 43 anos - na época, não havia a indústria das festas de aniversário e eu mesma fiz em papel cartão rosa, o desenho de uma florzinha simples, com aquela canetinha para tinta Nanquim (alguém sabe o que é isso? hahaha), criei e escrevi os versinhos (também a nanquim), acabamento do recorte com tesoura de picotar!
Tenho também uma carta linda recebida por ocasião do nascimento da minha terceira filha - hoje com 38 anos.
Da segunda filha - hoje com 40 anos - um vestidinho usado num casamento em que ela 'quase' foi, pela primeira vez, aos três anos, dama de honra. Quase porque mesmo depois de ensaiar, na hora da cerimônia ela não quis entrar de jeito nenhum!  (Não são coisas maravilhosas?)
Entre outros 'achados'.
Sei que muitos pensam na inutilidade disso, mas sou assim, fazer o quê?
Desse modo, o que eu posso preservar e passar às próximas gerações, eu faço. Se haverá interesse já não é da minha alçada. Faço  o que penso ser meu dever.

Comecei o trabalho hoje e pretendo continuar. Todo dia um pouco.
Estou com muitas ideias.  Bom, né?

*            *            *

Trechos de "Os nove setênios" - Antroposofia



“Através do conhecimento do caminho biográfico do ser humano podemos ter mais consciência do nosso processo individual en cada etapa da vida.”

Primeiro Setênio – 0 a 7 anos

É na primeira infância, mais precisamente durante os primeiros 7 anos, que as forças da individualidade estão localizadas na cabeça, e a tarefa neste período, é crescer, desenvolver os órgãos físicos que estão sendo formados, independizar o pólo superior do corpo, do pensar.

Com o nascimento, tem início o trabalho da individualidade, daquele ser cósmico que começará uma vida terrestre de transformação do invólucro corpóreo recebido dos pais, apto às suas necessidades. Portanto, neste período, a individualidade se ocupará em se apropriar do corpo herdado, moldando-o e reestruturando-o conforme suas peculiaridades interiores.

A criança, por assim dizer, reforma, refina seu instrumento físico, que é a corporalidade. Essa transmutação significa, aos poucos, eliminação das substâncias herdadas, desde as células mais microscópicas, que se tornam cada vez mais individualizadas, até os dentes, que são as mais duras do corpo, quando no final dessa etapa, a criança perde a dentição de leite, substituindo-a pela permanente, que é aquela que construiu a partir de sua interioridade.
(...)
É por experimentação que a criança aprende, por tentativa e erro, e pelo princípio da imitação. O que não queremos que ela faça, não deveríamos também fazer, pois ela seguramente imitará gestos, fala, atitude dos adultos ao seu redor.

Rapidamente as faculdades humanas vão sendo adquiridas, quando, aos 3 anos a criança já conquistou o espaço físico com o andar, o espaço social com o falar, e o espaço espiritual, com o pensar.

Em síntese, neste primeiro setênio os princípios são :
· imitação - · bondade - · órgãos dos sentidos - · desenvolvimento do pensar - · processo de individuação física
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Segundo Setênio – 7 a 14 anos

Ao final do processo anterior, do 1º setênio, as forças que estavam na cabeça se libertam e migram para a região do meio do corpo.

A criança vai acordando de cima para baixo, na direção da cabeça aos pés, e, nesta fase agora, coração e pulmão são os órgãos que ancoram o processo respiratório com o mundo.

O elemento do movimento de interiorização e exteriorização pauta a dinâmica desses órgãos e a relação da criança com o mundo.

Ela já não é mais um grande A, aberta para o mundo que a impregna, mas agora já possui uma interioridade maior e necessita de um elo de ligação entre o mundo de fora e o seu, interno.
(...)
É então que, no meio desta fase, o sentimento de diferenciação, por assim dizer, se estabelece fortemente, e a criança percebe com verdadeiro sentimento e uma espécie de dor, que existem diferenças: de educação entre si e os irmãos, diferenças de tratamento entre as pessoas, de raça, religião, cultura, enfim, situações onde ela se dá conta de que o mundo não é igual para todo mundo, que a lei não é a mesma para todos.

É, na verdade, um profundo despertar do sentimento próprio.
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Terceiro Setênio – 14 a 21 anos

Seguindo o sentido descendente das forças que do Cosmo vão se encarnando na Terra, neste período elas chegam aos membros; passaram da cabeça ao peito, e agora acordam e se localizam nos membros, no sistema metabólico motor.

Se observamos a postura da criança pequena, percebemos que ela anda meio que suspensa, pendurada; depois, um pouco maior, ela pula, e na adolescência, se arrasta, e neste caminho da humanização, aos poucos conquista a postura ereta.

Então, da mesma forma que o princípio da imitação regia a criança de 0 a 7 anos, o princípio da autoridade de 7 a 14 anos, agora o princípio da liberdade é o regente.

O processo de metamorfose do ser humano o leva agora a necessitar do aprendizado através da liberdade, onde vivências da verdade são fundamentais – assim como a vivência do bom no 1º setênio, e do belo no 2º setênio.
(...)
É a partir desta idade que começamos a ter um pensamento mais autônomo, ainda que, nesta época, acreditemos estar amadurecidos para efetuar julgamentos.

Há também o questionamento profissional, quando o jovem se pergunta sobre seu caminho e escolhas.

A opção entre o que lhe foi imposto e o que quer, cria rupturas. Buscar a si mesmo e descobrir o que é seu, o que é do outro, o que pode ser compartilhado, propicia ao jovem conhecer novas paragens e alargar seu horizonte antes de completar a ideia e impressão sobre si mesmo, que aos 21 anos se realizará com mais firmeza.
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Quarto Setênio – 21 a 28 anos

Retomando a ideia do homem como cidadão de dois mundos, o celeste e o terrestre, e a vida como uma conversa, um encontro destas duas forças, chega-se aos 21 anos de vida com o fim da fase do crescimento corporal, e princípio da auto-educação.

Aqui, de uma forma geral, as forças completaram e estiveram a serviço do desenvolvimento físico, e o homem emancipa-se de uma educação herdada; ele chega nesta idade com um patrimônio: um corpo adulto e uma estória pessoal, familiar, escolar.

Aos 21 anos, a entidade psíquica individual, o “Eu” começa realmente a se formar. Uma parte supra-sensível do ser humano, mais exterior, é desperta, acordada, e é aquela que está em contato com o mundo exterior – e por isso mesmo, muito mais impressionável por ele.
(...)
Com o “EU” mais livre do trabalho no corpo físico, e agora ocupado com a constituição da alma, temos então maior distanciamento daquele, e por isso podemos vê-lo deste novo ângulo.

Portanto, concretamente nesta fase, podemos estar:

-procurando emprego -terminando a faculdade -namorando /noivando /casando -iniciando nova constituição familiar -tendo filhos -estabelecendo as bases para a sobrevivência financeira
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Quinto Setênio – 28 a 35 anos

A fase do 5º setênio começa com uma das grandes crises na vida, por volta dos 28 anos, onde somos reivindicados a uma emancipação da imagem que até então tínhamos de nós mesmos, da nossa própria vida, dos nossos talentos, enfim, da nossa identidade.

A sensação anterior de ser dono do mundo sofre um abalo e o que toma o seu lugar, é uma sensação de angústia, de vazio, de desconhecimento de si mesmo, e insatisfação. Sentimo-nos impotentes nesta passagem da juventude para a maturidade, de um viver mais impulsivo para um viver mais sério, responsável.
(...) Temos a sensação de que nada que aprendemos ou fizemos, tem muito mais valor, sentimo-nos incapazes de termos idéias, e começamos a viver ao nível da alma um tipo de espelhamento, o mesmo sofrimento vivido no corpo físico enquanto adolescentes até 14 anos.

Portanto, concretamente nesta fase podemos estar:
-tendo crises no casamento, fazendo separações ou novas uniões. -tendo rupturas no trabalho ou vendo-o sob novas perspectivas -buscando o isolamento -trocando o círculo da amizades
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Sexto Setênio – 35 a 42 anos

· Relação com a Essência no mundo / No outro / Em si - · Mais capacidade de julgamento - · Desgaste físico x Maturidade Psíquica - · Conquista de mundo material - · O desafio é encontrar valores espirituais

· A pergunta é: como é que encontro o caminho para a essência do mundo e para a minha própria essência?
(...)
O mundo material teve já suas conquistas, construímos uma carreira, relações, família e, de repente, atentamos para a importância do mais recôndito nos seres ao nosso redor, no sentido do que fizemos, nas leis que regem o mundo.
(...)
A capacidade de julgamento aumenta e se torna mais livre dos invólucros superficiais, que a visão das fases anteriores possuía.

Vivencia-se um novo nascimento, precedido pela morte e o vazio dos velhos princípios. Reinicia um período de percepção dos limites e aceitação de si mesmo. Nos tornamos mais disponíveis para o mundo, porque deixamos gradativamente de nos ocupar conosco mesmos. É o desabrochar do desenvolvimento espiritual que chega quando o homem vai chegando aos 40 anos e ele se questiona se há ainda algo de novo que possa ser vivido. Começa a se perguntar sobre sua missão na vida. Sente aos poucos que algo está por vir, e acontece um verdadeiro renascimento, quando se julgava tudo pronto e definido.

A aceitação do desgaste físico, e a busca de um ritmo adequado se faz necessário para que a consciência se amplie em todas as direções.
(...)

**
Sétimo Setênio – 42 a 49 anos

Como um novo recomeço, a entrada nesta fase traz a vivência interna de que algo novo necessariamente há de vir.

Percebe-se que, como está, não dá para ficar ou continuar, e que a vida dá sinais de grande mudanças, as pessoas sentem algo de novo em si.

O princípio desta fase coincide com o final do período mais quente e ensolarado da vida, a saber, os últimos 20 anos; os próximos setênios correspondem ao desenvolvimento da natureza espiritual do homem, assim como o período anterior ao desenvolvimento da alma, e o primeiro, ao desenvolvimento físico.

A entrada nos 40 traz, quase que inevitavelmente, uma crise existencial, e como é uma fase que espelha fisiologicamente os 14 – 21 anos, vários fatores da adolescência influenciam nesta época. Eclode uma necessidade de rejuvenescimento que pode tomar as mais variadas formas na mulher e no homem.

A desvitalização do corpo físico gera medos reais do envelhecimento e da morte. As mulheres, próximas da menopausa, percebem que o corpo não é mais rijo como antes, que o rosto fica enrugado de um jeito difícil de dissimular, e então as plásticas imperam. Os homens sentem que as pernas afinaram, que a barriga cresceu muito, e então o cooper e as academias de ginástica e musculação desempenham seu papel.
(...)
Com a sensação de perda de força e de morte, o ser humano, nesta etapa da vida, pode ter muitas depressões e se apegar ao que é velho e conhecido no trabalho, nas relações familiares e pessoais, numa tentativa de manter intacto o que já têm.

As mudanças que a vida pede, geram muitas inseguranças que impedem o indivíduo de abrir mão do que é velho, como valores, preconceitos, papéis, e ir de encontro ao renascimento que o espera.
É com muita dificuldade e sofrimento que esta etapa é transposta para conseguirmos vislumbrar os frutos que possuímos para doar.

A resistência a mudanças impede o indivíduo de desenvolver talentos que ficaram para traz, tesouros que ficaram escondidos, e reativá-los.

E para complicar a falta e os excessos desta fase, há a questão do sósia, da sombra, daquilo que encarna no parceiro, no patrão, nos filhos, enfim, que é tão difícil de lidar, porque está diretamente ligado aos aspectos pessoais não resolvidos, não integrados.

As forças do sósia se tornam extremamente intensas em torno dos 40 anos. São aspectos para os quais somos levados a hostilizar, ou nos identificar cegamente, por uma força que se ergue em nós. Em geral, nos confrontamos com o sósia do outro, já que a própria sombra é difícil de ver.

Assim, grandes confusões, agressões e descasamentos acontecem, porque as relações ficam contaminadas por aquilo que se vê no outro, que é profundamente unilateral – algo expurgado daquilo em nós que não admitimos, não conseguimos lidar, mais o do outro.

Projetamos nossos aspectos indesejáveis e/ou renegados no outro, e somos vulneráveis à sua sombra – seus vícios, manias, defeitos, enfim.
(...)
Há que se desenvolver muita calma interior!

Devemos ter em mente que tudo o que fazemos contra a vontade é alimento para o sósia.

E fica, então, difícil reconhecer nele uma oportunidade para a transformação de seu conteúdo.

A sombra e a luz são condições inerentes à existência humana, e uma, certamente, não existe sem a outra na vida terrena.
**
Oitavo Setênio – 49 a 56 anos

A entrada nos 50 anos equivale à época mediana do desenvolvimento do espírito, e por isso mesmo, para aquele que vive espiritualmente, a mais tranquila e produtiva da vida.

As forças, que na fase anterior estavam se desprendendo da região metabólica e dos órgãos correspondentes, estão agora se libertando da área mediana do corpo, coração e pulmão, e se dispondo para uma moralidade e uma ética de qualidade superior, refinada, mais humanizada.
(...)
Dependendo da evolução do ego do indivíduo, ele pode dispor da sua sabedoria para o mundo, ou continuar apegado às próprias necessidades ou às do grupo familiar, desconhecendo a maravilha que é colocar seu patrimônio interior a serviço do mundo.

É a fase do pai e da mãe universal.

Como esta fase espelha fisiologicamente o setênio 7 a 14 anos, o elemento do ritmo tem de ser priorizado, e os órgãos rítmicos, assim como o ritmo cotidiano, têm de ser cuidados, preservados e respeitados.

É comum o aparecimento de problemas respiratórios, principalmente se a relação respiratória com o mundo foi difícil na pré puberdade; stress e enfarte também ocorrem.

Deve-se procurar um novo ritmo biológico mais adequado às características físico emocionais.
(...)
No concreto, neste período ocorrem as aposentadorias, o que por sua vez traz o sentimento de inutilidade e vazio.

Há que se preparar para esse momento e refletir no que se fará após, planejar a vida para o depois desse acontecimento, afim de não ser uma passagem muito brusca que pode assustar e levar o indivíduo a exceder no trabalho para ainda se sentir útil e não velho, impotente, incapaz.

A sociedade como um todo ainda valoriza muito a força biológica e não tem olhos e condições de discernimento para as capacidades de liderar dos 50 anos, e, sobretudo, de abençoar, principalmente aqueles que puderam, entre 7 e 14 anos, aprender a venerar.

Nono Setênio – 56 a 63 anos

Os mesmos órgãos dos sentidos que foram as portas para a entrada na vida terrestre no 1º setênio, vão, aos poucos, se tornando portas de saída; não se vê, nem se ouve tão bem como antigamente, o paladar já não consegue sentir direito o gosto dos alimentos, os cheiros e as texturas não são mais sentidos tão intensamente.

A vida começa a dar sinais de que o ser humano têm agora que ir-se voltando para dentro de si mesmo, internalizar-se, desenvolver os sentidos espirituais.

O portal de comunicação com o mundo externo começa a se fechar.
(...)
O 56º ano de vida traz uma brusca mudança que é sempre crítica, pois penetra-se numa esfera onde tudo parece ter que morrer para depois ressuscitar de uma forma muito sofrida.

Por vezes tem-se a sensação de fracasso de tudo aquilo que se desejou, e que nada do que se almejou foi alcançado.

Questiona-se muito o que se realizou no passado, e se torna importante avaliar o que ainda deseja realizar, o que pode e o que não pode mais ser realizado pela própria condição desvitalizadora, pelo tempo.
(...)
Caminhando para a terceira idade, e mais livre dos compromissos da 1ª e da 2ª, temos a chance de rever o que ficou de lado e que, com frequência, dá novo sentido à vida. Entregar-se ao que pede para ser vivido com satisfação, de maneira renovada, e ao mesmo tempo, livrar-se do inútil e supérfluo que se carrega por hábito.

Inclusive de preconceitos, pois vivemos em uma época com tantos recursos para a renovação do corpo e da alma, que deveríamos fazer bom uso do livre arbítrio e decidir que rumo tomar no caminho do amor, do encontro com outros seres humanos, da alegria de viver.

Como tudo no Universo está em constante transformação, e nada é estável e permanente, somente existe possibilidade de evolução onde há possibilidade de mudança.
(...)
**
Após os 63 anos, o ser humano vai, cada vez mais se libertando das leis e ritmos do destino.

O envelhecer vai chegando com o florescimento interno que é percebido no olhar do idoso que vive muito mais em uma realidade supra sensível do que sensível – para além dos sentidos.

O corpo vai ficando mais leve e transparente, o espírito se torna mais visível, os “avós” irradiam aquela força onde o sol interior consegue aparecer.


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Fonte: Biblioteca Virtual da Antroposofia

quarta-feira, 15 de abril de 2015

"A velhinha de cem anos" - Maurício Silva

A velhinha de cem anos
Maurício Silva - "Obvious magazine"

Neste final de semana, fui à festa de aniversário de uma pessoa de cem anos. Isso mesmo: a pessoa estava completando cem anos de idade. Dá para imaginar? 
Quando os bolcheviques triunfaram, ela já estava por aí, provavelmente dando seus primeiros passos. Quando a segunda guerra começou, já era uma jovem adulta e quando o homem chegou à Lua, beirava, já, a velhice. 
Já tinham me contado a respeito de sua personalidade e, pessoalmente, verifiquei ser tudo verdade: uma senhorinha fraca, fraca, mas que não economizava nos palavrões dirigidos aos netos (que faziam por merecer, é verdade). 
Que eu vi, a velhinha deu umas bicadas na caipirinha e tomou uns bons goles de cerveja: cem anos!

Durante o almoço, confesso, fiquei um pouco embasbacado com o absurdo de uma pessoa com três dígitos de idade estar sentada à minha frente – ainda mais vociferando palavrões e tomando caipirinha. 
Depois de um tempo, porém, provavelmente influenciado pelo diálogo que vos descreverei a seguir, minha mente de crítico começou a bolar coisas um pouco diversas da alegria e festividade do evento.

O diálogo foi o seguinte: ocorreu entre o pai de minha namorada – neto da senhora – e a velhinha. 
Ele se aproximou do rosto dela – porque, vocês já devem imaginar, a audição da centenária não está lá as mil maravilhas – e disse: “ano que vem estaremos todos aqui novamente” (ou algo assim, fiquei sabendo por terceira mão), ao que a velhinha respondeu: “eu não quero fazer mais um aniversário.”, ele, então, respondeu: “quero dizer: no seu velório” – adivinhem a reação da velhinha: um sorriso. 

Em todo o almoço, eu não a vi sorrir sequer uma vez. Apresentava sempre aquele semblante cansado e meio de saco cheio daquela comilança e daquele falatório eufórico. 
A senhorinha praticamente era o chaveirinho da galera, para falar a verdade.

As minhas impressões de crítico, nesse momento em que escrevo, pairam sobre dois temas: aniversários de pessoas muito idosas e a realidade da vida. 
As festas de aniversário de uma criança de um ano e de uma senhora de cem anos fazem parte da mesma categoria – “festa de aniversário”. 
Muito embora sejam chamados pelo mesmo termo, são eventos com focos completamente diferentes, tendo por comum, apenas, a conclusão de um ciclo, no caso, um ano. 
Comemora-se o primeiro ano de uma – espera-se – longa e feliz vida para a criança recém-chegada a esse mundo, ao passo que se comemora mais um ano de resistência por parte da senhora contra a senhora que nos espera a todos nós no final da linha. 
Quanto à realidade da vida, o que penso é o seguinte: passaram-se cem anos, o que gera nos vossos corações, leitores, a frase tristemente dita pela aniversariante: “não quero fazer mais um aniversário”? A vida tornou-se mais tédio, impaciência e impotência do que qualquer outra coisa. 
A senhora precisa de auxílio em todos os momentos, já não tem mais liberdade para fazer o que quer que seja: ao menos produzisse algo, mas esse não é seu caso. 
Fosse ela uma Virginia Woolf que houvesse resistido à tentação do suicídio, mas não. É uma senhora aguardando, apenas. 
As pessoas com quem cresceu – se foram. Seus pais, irmãos, tios, amigos – todos se foram. Restou-lhe a si, sobreviveu a todos. 
Espero ser essa uma visão pessimista minha sobre nosso trajeto e sobre a realidade dessa senhora – que sei eu? 
Se algo nos espera além, entretanto, que ela o desfrute ao atravessar e que, de alguma maneira, volte a nascer.
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Decálogo de Bertrand Russel

Bertrand Arthur William Russell - 1872/1970
10 mandamentos para a Educação e Vida
Adriano Dias - Revista 'Semema'

Discutir educação é uma forma sutil de falar sobre a sociedade humana como um todo, pois a dinâmica delegada às salas de aula é a de formar pessoas para a sociedade, assim como se fazia antigamente apenas em família e nas relações sociais da vida urbana. 
Não é de hoje que todo mundo mete o bedelho em educação. Todo grande pensador que se preza produziu alguma reflexão significativa (ou ao menos deu o seu pitaco) sobre o processo fundador da civilização: a Educação.
Embora professores fiquem indignados com a pretensa autoridade de senhores que nunca adentraram a uma sala de aula, não vivenciando a dinâmica real do ensino em uma instituição, ainda assim há reflexões memoráveis sobre a atuação do docente (pensada de forma ideal) que merecem um olhar atencioso. 
É necessário que se admita que ensinar é uma dinâmica relacionada com o ideal de sociedade, portanto, pensar formas mais eficazes de realizar esse processo é imprescindível para criar diretrizes que norteiem as bases de nossa sociedade. 
Afinal de contas, nem mesmo o ator primordial dessa dinâmica, o docente, tem tanta convicção sobre sua atuação a ponto de não ser colocada a prova toda sua pedagogia empírica (o mesmo pode ser dito em relação aos pais e sobre cada um de nós individualmente).

Bertrand Russell foi uma figuraça que atravessou os séculos XIX e XX, polemizando sobre as relações de poder, direitos humanos, pacifista que saia às ruas levar porrada da polícia, crítico de qualquer tipo de autoridade e autoritarismo, deixou um legado enorme em vários campos do pensamento, particularmente na filosofia, dentro do qual podemos pinçar seu “Decálogo Liberal – uma visão para as responsabilidades de um professor”, publicado em um artigo da revista do The New York Times em dezembro de 1951. 
O visionário galês, então o mais proeminente pensador liberal do mundo, propagando uma filosofia crítica que veio a influenciar todo o pensamento moderno, refletiu sobre o papel social do docente e acabou produzindo um conjunto de leis comportamentais que podem ser aplicadas à vida de qualquer indivíduo.
Suas normas não só prescrevem a conduta educada e evoluída que se espera de um docente (bem como de um pai ou autoridade qualquer) como nos fazem ponderar sobre nossa própria existência, as opiniões que temos, as verdades que consagramos como inquestionáveis, além dos valores sobre os quais embasamos nossa perspectiva de felicidade. 
Como libertário, Bertrand Russell pensava a possibilidade de constituir um mundo mais livre que permita a cada indivíduo que se desenvolva em sua plenitude, discurso que encontra eco em vários formadores de opinião da atualidade, mas o galês sabia que o cerne dessa nova ordem mundial reside no exercício de poder em três âmbitos: 
 político (governar respaldado apenas pelo consenso e argumentação lógica), 
educacional (nas relações entre pais e filhos, professores e alunos, mediadas pela ponderação, equilíbrio racional e respeito)
e individual (questionando sempre nossa perspectiva existencial e as verdades em que acreditamos). Veja:

1. Não tenhas certeza absoluta de nada.

2. Não consideres que valha a pena proceder escondendo evidências, pois as evidências inevitavelmente virão à luz.

3. Nunca tentes desencorajar o pensamento, pois com certeza tu terás sucesso.

4. Quando encontrares oposição, mesmo que seja de teu cônjuge ou de tuas crianças, esforça-te para superá-la pelo argumento, e não pela autoridade, pois uma vitória que depende da autoridade é irreal e ilusória.

5. Não tenhas respeito pela autoridade dos outros, pois há sempre autoridades contrárias a serem achadas.

6. Não uses o poder para suprimir opiniões que consideres perniciosas, pois as opiniões irão suprimir-te.

7. Não tenhas medo de possuir opiniões excêntricas, pois todas as opiniões hoje aceitas foram um dia consideradas excêntricas.

8. Encontra mais prazer em desacordo inteligente do que em concordância passiva, pois, se valorizas a inteligência como deverias, o primeiro será um acordo mais profundo que a segunda.

9. Sê escrupulosamente verdadeiro, mesmo que a verdade seja inconveniente, pois será mais inconveniente se tentares escondê-la.

10. Não tenhas inveja daqueles que vivem num paraíso dos tolos, pois apenas um tolo o consideraria um paraíso.

Percebe-se a espinha dorsal de seu raciocínio sobre o exercício ou não do poder, ou sua substituição pela argumentação. 
Resumindo, para Russel, se você tem razão no que pensa, defenda-a com argumentos, sem valer-se de outros artifícios como força, autoridade, cara feia, voz alterada, como foi exposto em nosso artigo sobre o preconceito: Deixem o racista falar.

Amadurecendo sua leitura de mundo com o tempo e a experiência, o filósofo que vivenciou profundamente as relações políticas internacionais (exerceu importante papel diplomático no diálogo entre os blocos durante a Guerra Fria), Russel publica esse Decálogo num momento em que ficam-lhe claros os estragos causados pelo exercício da autoridade e do poder nas relações humanas. 
Seus mandamentos podem ser, assim como os da bíblia, referência de conduta de um governante de nação, de um presidente de empresa, professor, pai ou indivíduo. 

Perspicaz, direcionou suas leis ao professor, agente social sobre o qual toda a sociedade deposita a esperança de formação de novos cidadãos, mas acaba atingindo a todos.

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domingo, 12 de abril de 2015

Duas considerações sobre "Brilho eterno de uma mente sem lembranças"

Abençoados os que esquecem
Rejane Borges -  em "Obvious - cinema" 

Gosto de Charlie Kaufman por causa de sua sensibilidade curiosa, para não dizer esquisita. Seus roteiros são todos mais ou menos pelo avesso. Genais. Kaufman é um homem que lê um poema e inspirado escreve um roteiro. Assim nasceu “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, EUA, 2004).
  

"Feliz é a inocente vestal / Esquecendo-se do mundo e sendo por ele esquecida / Brilho eterno de uma mente sem lembranças / Toda prece é ouvida, toda graça se alcança". 
Esse poema de Alexander Pope é citado no insólito "Brilho Eterno" do diretor Michael Gondry. 
O poema remete à ideia de que a única maneira de ser feliz é esquecer-se e tornar-se esquecido, pois somente na ausência de qualquer lembrança existe toda a graça. 
Pope fala de mentes imaculadas, corações resguardados, os quais não são assombrados por lembranças do que um dia foi e nunca mais será.

"Brilho Eterno" ostenta um elenco de grandes nomes como Jim Carrey, Kate Winslet, Mark Ruffalo, Kirsten Dunst, Elijah Wood e o veterano Tom Wilkinson - talentoso e premiado ator que já engrandeceu, além do cinema, produções da TV americana.
O roteiro foge completamente ao padrão de Hollywood - como era de se esperar, tratando-se de Kaufman, o mesmo gênio que escreveu o excêntrico "Quero ser John Malkovich" (Being John Malkovich, EUA, 1999) e "Adaptação" (Adaptação, EUA, 2002). 
Ele consegue atribuir às personagens sentimentos tão densos que quase necessitam de ser humanizados. 
Os labirintos narrativos do roteiro prendem o expectador a uma trama supra-sensível, estendendo-se à metafísica - característica de Kaufman. Fragmentado em diversos temas, como amor, passado, memória, solidão, etc., o filme permite variadas formas de interpretação.

Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) formam um casal que poderia ser considerado o mais "anti-herói" dos casais do cinema contemporâneo. 
Eles simplesmente não se adaptam - no entanto, se amam. 
Joel é um homem sensato, contido e tímido. Um pouco neurótico e melancólico. É mais pessimista e impõe limites aos seus próprios sonhos, preferindo os pés no chão. 
Clementine leva a vida menos a sério e é mais espontânea do que Joel, beirando uma irresponsabilidade inerente de quem é mais atrevido. Ela abusa da liberdade de se pronunciar e, apesar da aparência forte, é uma pessoa bem sensível.



O relacionamento é rompido e, frustrada, Clementine submete-se a um tratamento experimental que promete apagar da memória os momentos que viveu ao lado de Joel. 
No entanto, Joel descobre o que ela fez e, sentindo-se agredido, resolve fazer o mesmo. 
Porém, desiste de esquecê-la, por tomar consciência de que apagando-a de sua memória, apagará também uma parte de si mesmo. 
É então que começa uma saga dentro da mente de Joel para salvar Clementine do esquecimento e escondê-la em momentos de sua vida em que ela não esteve. Como sua infância, por exemplo.

O surrealismo da trama é potencializado pela fantástica fotografia e cores da película. 
O filme joga com a plasticidade da nossa memória, um lugar cujo suporte físico é enorme. 
A trama possui um viés cômico e ao mesmo tempo romântico, com um ritmo atemporal.
Apesar da máxima "abençoados os que esquecem" - baseada em uma frase de Nietzsche - não há como abafar os ecos de relações ou circunstâncias que um dia vivemos. 
O filme oprime o comportamento prepotente do ser humano, que tenta recriar a memória para evitar a dor.
Assim como o amor define a nossa humanidade, a dor a define também.



Quem assina a fantástica trilha sonora é o compositor norte-americano Jon Brion, com músicas que acompanham perfeitamente o ritmo da película. 
O filme levou a estatueta do Oscar pela categoria "Melhor Roteiro Original", além de ter sido nomeado na categoria de "Melhor Atriz" pela espetacular interpretação de Kate Winslet.


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Uma mente com lembranças, por favor.
Larissa Soares -  em "Obvious - cinema"
Alguns afirmam: “Abençoados são os esquecidos.” Não será o esquecimento uma forma de escapar de si mesmo?
  


Jim Carrey dá vida ao depressivo Joel Barish que depois de uma forte decepção amorosa, tenta se submeter a um tratamento que promete apagar memórias
O filme "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças", pode ser considerado um dos melhores filmes de forte apelo psicológico e reflexivo. 
A história é basicamente um drama sobre relacionamentos, sem muitos enfeites e camuflagens. Apenas o gostar e a vontade de estarem juntos é que basta. 

Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) decidiram fazer com o que o namoro desse certo, mas não foi bem o que aconteceu. 
Clementine se submete a um tratamento experimental que retira de sua memória os momentos que passou com Joel. 
Ele então, extremamente frustrado por ainda ter sentimentos pela garota, decide fazer o mesmo. Mas durante o procedimento, desiste de tentar esquecê-la.


A reflexão principal que o filme provoca é o desejo fundamental que o ser humano tem de se livrar das lembranças e acontecimentos que trazem sensações ruins ou de desgosto. 
É tirar da cabeça, como quem joga coisas no lixo, aquele passeio ao shopping, aquele beijo de despedida, aquela noite de fantasias, que mesmo que tenham sido retratos da perfeição, agora não passam de lembranças perturbadoras. 
É se ver liberto de mágoas para viver novos momentos sem medo de se decepcionar. 
Parece tão simples, tão eficaz. Imagine: “Me livrei dos pensamentos, daquilo que me dava saudades, e que me causava dores que pareciam nunca acabar, e agora posso seguir em frente, que bela pedida!”

Mas faça uma viagem nas suas memórias como Joel fez no filme ao ter suas lembranças apagadas pouco a pouco. 
Vai perceber que elas te ensinaram, vai entender que não vale uma vida se não tiver histórias pra contar, coisas estúpidas pelas quais vai chorar, pessoas que partiram o seu coração e foram embora sem nem explicar o porquê. Tudo isso vale a pena, pois é disso que somos feitos. 
Não queira ser uma lousa e apagar os erros, os momentos e as pessoas do passado. São todos esses empecilhos que te fizeram chegar onde você está e formaram a pessoa que você é. 
Não se desfaça daquilo que faz parte de você. 
Aquele rapaz babaca por quem você se apaixonou na adolescência e que depois brincou com seus sentimentos e te fez chorar, hoje pode te fazer rir, pois você encontrou um alguém muito melhor.
Aquela garota que fez parar seu coração, e que decidiu te esquecer de uma vez por todas, você pode simplesmente tentar esquecê-la também, mas não apagá-la, pois não existem amores que o tempo, amigos, e novos amores não possam apagar naturalmente.
Vai desperdiçar as delícias que lembranças quando bem recordadas podem nos proporcionar? Tenham um eterno brilho de uma mente com lembranças, meus caros.

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