quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Adélia e Elisa

Nas páginas do facebook, recebo este presentão da querida amiga e ex aluna CRIS VALE.
Bom demais ser lembrada dessa maneira.
Muito, muito agradecida, querida Cris.


Divinadélia
por Elisa Lucinda

Então era Divinópolis. Não era mais sonho. 
Em sua terra, senhora, desembarcamos, eu e a Geovana Pires, com o embrião de uma peça, ainda um híbrido entre recital e espetáculo, na abertura oficial da segunda Festa Literária de Divinópolis (FLID). 
Apresentamos nosso estudo teatral sobre o sagrado e o erótico na obra da maior poeta de língua portuguesa do nosso tempo. 
Viva, ereta, digna, sábia, lúcida, leve, jocosa, discreta, aguçada, espirituosa, inteligente, generosa, a mais sofisticada e aparentemente mais popular filósofa da vida que conheço.

O que aconteceu no palco foi uma espécie de liturgia. 
Quem entrava sentia o cheiro da mirra a exalar no teatro vindo do turíbulo donde espargimos tal perfume. 
O que mostramos não era a Adélia Prado do fogão, dos peixes, a mulher aparentemente desdobrável, dividida em funções domésticas e quitutes. 
Adélia é uma investigadora da alma humana. Tece com ela mil simbolismos e vai nos representando. Quando junta o erótico com o sagrado, ou melhor, quando não o separa em sua gênese, desaba sobre nós, transgressora; desponta em seu povoado, hoje uma cidade de médio porte, como um enigma moderno. 
Quem ler Adélia com mais atenção vai ver a mulher que deseja, que tem tesão, que tem culpa e gozo no perdão. Vai ver as contradições que inventamos quando aceitamos uma oposição entre a carne e o espírito. 
Em seus poemas ela diz claramente que Jesus, na cruz, “nos revela apaixonadamente a inocência da carne” e não esconde seu amor por Ele. 
Herdeira do êxtase de santa Teresa, dos mistérios gozosos que envolvem as faces das santas e dos santos, fã dos super eróticos cânticos de Salomão, Adélia é uma divina criatura. E a sua obra nos põe em nosso lugar de criatura.
A arte é uma grande professora. 

Hoje regressada de lá, daqui do meu jardim, reflito quantas coisas me ensinou essa viagem. Abençoada que me sinto por estar tendo o direito de conhecer o meu mito, minha mestra, a dona da poesia que mais frequenta minhas aulas, minha estante, nosso repertório da Casa Poema. 
Mas a sofisticada simplicidade da mulher Adélia, a altivez com que ela e o marido Zé tratam a vida a redimensiona na nossa frente. Uma vida com sentido. 
O mundo está cada vez mais cheio de mais devotos do consumismo. 
A sociedade virou uma loucura chamando de velho o produto do ano passado.

Um dia estava em uma viagem e percebi que no meu celular a mesma foto que a menina fazia ao lado saia sem qualidade ou definição da imagem dela. Estranhei: Olha o seu também é Iphone não sei por que sua foto está melhor. Então, ela me disse, sussurrando, como uma cúmplice de algo que eu não sabia: Ah, o seu é 4? Eu disse: é, tem que falar baixo? Eu não sabia. Venho falando isso alto, em qualquer lugar. É feio? Pega mal pra mim? Coitado, o Iphone 4 é o negão dos Iphones? Claro que o 6 é superior. Mas não atribuo uma hierarquia entre os seres a partir dos seus bens. Quem tem um aparelho eletrônico mais moderno que o outro definitivamente não é superior ao outro por isso. Sei que me entenderam. Não gasto mais uma linha sobre isso.

O que quero dizer é que a poesia pode nos ensinar essas coisas. É ela que tem que ir para as escolas. É ela quem dá conta numa só tacada de valores da convivência comunitária, fundamentos da paz, justiça, ética, sentimentos, além de excelente uso da nossa língua. 
Se a poesia der ao ser humano, no mínimo, uma narrativa, já está dando tudo.

Divinópolis é uma cidade conhecida hoje no Brasil e no mundo por causa de Adélia. Sua luz deu luz e existência à esta divina pólis aos olhos de fora. 
Católica, conservadora, ébria, divertida, carinhosa, doida e devota esta terra é. 
Cheia de jovens talentos a quem quer que honrem a consciência de que são herdeiros da grande maga do lugar, a inimitável. A que faz a diferença. 
Em poucos dias aprendi muito. E acho que Adélia ainda é seu grande enigma. Nascida antes de seu tempo, é daqueles escritores que só serão bem entendidos no futuro. Mas enquanto isso, aceitei tomar café com ela, conhecer sua casa, seu jardim, comer do seu queijo, falar poesia entre seus amigos, beber licor, comentar a nossa peça, o quanto agradou o coração da homenageada e o quanto nos autorizou na empreitada. 

Numa tarde, depois de umas caipirinhas na casa de Ana e Márcio, amigos que fiz lá como Denise e Daniel, sonhadores do lugar, passei em frente a um culto, um órgão lindo e cantavam um cântico lindo, bem alto e eu também soltei a voz cheia de caipirinha na ideia louvando. Aprendi a canção e vim cantando na rua alto. Cantava sem preconceito, achei bonito as pessoas louvando, o estado da religião, o torpor. 
Adélia diz que preconceito é pirraça. É mesmo. 
Mas a missionária da igreja veio correndo atrás de mim: Volta, acalma seu coração. Eu estava bem, feliz, o meu coração calmo, alegre, batendo assim: Adélia, Adélia, Adélia, que honra pertencer ao seu tempo, ter acesso à claridade da sua poesia. 
Quando passamos para nos despedir, o Zé na sua oficina, as placas de luz solar sobre a casa viva, o jardim de rosas. Me chamou ao seu quarto, um templo de gente rara, normal. Deu-me uma caixinha de madeira linda, cheirosa, com um terço dentro: “ Brilhoso igual ocê” . Uma libertação. Saí de lá liturgicamente pagã.

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