quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Para os filhos adultos

Trechos de artigo de Ana Fraiman
Mestre em Psicologia Social pela USP



(...)
A irritação por precisar mudar alguns hábitos 
Muitos filhos adultos ficam irritados por precisarem acompanhar os pais idosos ao médico, aos laboratórios. 
Irritam-se pelo seu andar mais lento e suas dificuldades de se organizar no tempo, sua incapacidade crescente de serem ágeis nos gestos e decisões. 
Desde os poucos minutos dos sinais luminosos para se atravessar uma rua, até as grandes filas nos supermercados, a dificuldade de caminhar por calçadas quebradas e a hesitação ao digitar uma senha de computador, qualquer coisa que tire o adulto de seu tempo de trabalho e do seu lazer, ao acompanhar os pais, é causa de irritação. Inclusive por que o próprio lazer, igualmente, é executado com horário marcado e em espaço determinado. Nas salas de espera veem-se os idosos calados e seus filhos entretidos nos seus jornais, revistas, tablets e celulares. 
Vive-se uma vida velocíssima, em que quase todo o tempo do simples existir deve ser vertido para tempo útil, entendendo-se tempo útil como aquele que também é investido nas redes sociais. 
Enquanto isso, para os mais velhos o relógio gira mais lento, à medida que percebem, eles próprios, irem passando pelo tempo. O tempo para estar parado, o tempo da fruição está limitado. 
Os adultos correm para diminuir suas ansiosas marchas em aulas de meditação. Os mais velhos têm tempo sobrante para escutar os outros, ou para lerem seus livros, a Bíblia, tudo aquilo que possa requerer reflexão. Ou somente uma leve distração. 
Os idosos leem o de que gostam. Adultos devoram artigos, revistas e informações sobre o seu trabalho, em suas hiper especializações. Têm que estar a par de tudo just in time – o que não significa exatamente saber, posto que existe grande diferença entre saber e tomar conhecimento. 
Já os mais velhos, querem mais é se livrar do excesso de conhecimento e manter suas mentes mais abertas e em repouso. Ou, então, focadas naquilo que realmente lhes faz bem como pessoa. 
Restam poucos interesses em comum a compartilhar. 
Idosos precisam de tempo para fazer nada e, simplesmente recordar. 
Idosos apreciam prosear. 
Adultos têm necessidade de dizer e de contar. A prosa poética e contemplativa ausentou-se do seu dia a dia. Ela não é útil, não produz resultados palpáveis.

A dificuldade de reconhecer a falta que o outro faz
Do prisma dos relacionamentos afetivos e dos compromissos existenciais, todas as gerações têm medo de confessar o quanto o outro faz falta em suas vidas, como se isso fraqueza fosse. Montou-se, coletivamente, uma enorme e terrível armadilha existencial, como se ninguém mais precisasse de ninguém. 
A família nuclear é muito ameaçadora. para o conforto, segurança e bem-estar: um número grande de filhos não mais é bem-vindo, pais longevos não são bem tolerados e tudo isso custa muito caro, financeira, material e psicologicamente falando. 
Sobrevieram a solidão e o medo permanente que impregnam a cultura utilitarista, que transformou as relações humanas em transações comerciais. 
As pessoas se enxergam como recursos ou clientes. 
Pais em desespero tentam comprar o amor dos filhos e temem os ataques e abandono de clientes descontentes. 
Mas, carinho de filho não se compra, assim como ausência de pai e mãe não se compensa com presentes, dinheiro e silêncio sobre as dores profundas as gerações em conflito se infringem. Por vezes a estratégia de condutas desviantes dão certo, para os adolescentes conseguirem trazer seus pais para mais perto, enquanto os mais idosos caem doentes, necessitando – objetivamente – de cuidados especiais. 
Tudo isso, porém, tem um altíssimo custo. 
Diálogo? Só existe o verdadeiro diálogo entre aqueles que não comungam das mesmas crenças e valores, que são efetivamente diferentes. 
Conversar, trocar ideias não é dialogar. 
Dialogar é abrir-se para o outro. É experiência delicada e profunda de auto revelação. 
Dialogar requer tempo, ambiente e clima, para que se realizem escutas autênticas e para que sejam afastadas as mútuas projeções. 
O que sabem, pais e filhos, sobre as noites insones de uns e de outros? O que conversam eles sobre os receios, inseguranças e solidão? E sobre os novos amores? 

Cada geração se encerra dentro de si própria e age como se tudo estivesse certo e correto, quando isso não é verdade.

A dificuldade de reconhecer limites característicos do envelhecimento dos pais 
Este é o modelo que se pode identificar. Muito mais grave seria não ter modelo. 
A questão é que as dores são tão mascaradas, profundas e bem alimentadas pelas novas tecnologias, inclusive, que todas as gerações estão envolvidas pelo desejo exacerbado de viver fortes emoções e correr riscos desnecessários, quase que diariamente. 
Drogas e violência toldam a visão de consequências e sequestram as responsabilidades. 
Na infância e adolescência os pais devem ser responsáveis pelos seus filhos. 
Depois, os adultos, cada qual deve ser responsável por si próprio. 
Mais além, os filhos devem ser responsáveis por seus pais de mais idade. 
E quando não se é mais nem tão jovem e, ainda não tão idoso que se necessite de cuidados permanentes por parte dos filhos? 
Temos aí a geração de pais desvalidos: pais órfãos de seus filhos vivos. E estes respondem, de maneira geral, ou com negligência ou, com superproteção. 
Qualquer das formas caracteriza maus cuidados e violência emocional.

Na vida dos mais velhos alguns dos limites físicos e mentais vão se instalando e vão mudando com a idade. Dos pais e dos filhos. 
Desobrigados que foram de serem solidários aos seus pais, os filhos adultos como que se habituaram a não prestarem atenção às necessidades de seus pais, conforme envelhecem. Mantêm expectativas irrealistas e não têm pálida ideia do que é ter lutado toda uma vida para se autoafirmar, para depois passar a viver com dependências relativas e dar de frente com a grande dor da exclusão social. 
A começar pela perda dos postos de trabalho e, a continuar, pela enxurrada de preconceitos que se abatem sobre os idosos, nas sociedades profundamente preconceituosas e fóbicas em relação à morte e à velhice. 
Somente que, em vez de se flexibilizarem, uns e outros, os filhos tentam modificar seus pais, ensinando-lhes como envelhecer. 
Chega a ser patético. 
Então, eles impõem suas verdades pós-modernas e os idosos fingem acatar seus conselhos, que não foram pedidos e nem lhes cabem de fato.

De onde vem a prepotência de filhos adultos e netos adolescentes que se arrogam saber como seus pais e avós devem ser, fazer, sentir e pensar ao envelhecer? 
É risível o esforço das gerações mais jovens, querendo educá-los, quando o envelhecimento é uma obra social e, mais, profundamente coletiva, da qual os adultos de hoje – que justa, porém indevidamente – cultivam os valores da juventude permanente e, da velhice não fazem a mais pálida ideia. 
Além do que, também não têm a menor noção de como haverão eles próprios de envelhecer, uma vez que está em curso uma profunda mudança nas formas, estilos e no tempo de se viver até envelhecer naturalmente e, morrer a Boa Morte. 
Penso ser uma verdadeira utopia propor, neste momento crítico, mudanças definidas na interação entre pais e filhos e entre irmãos. 
Mudanças definidas e, de nenhuma forma definitivas, porém, um tanto mais humanas, sensíveis e confortáveis. 
O compartilhar é imperativo. 
O dialogar poderá interpor-se entre os conflitos geracionais, quem sabe atenuando-os e reafirmando a necessidade de resgatar a simplicidade dos afetos garantidos e das presenças necessárias para a segurança de todos.

Quando a solidão e o desamparo, o abandono emocional, forem reconhecidos como altamente nocivos, pela experiência e pelas autoridades médicas, em redes públicas de saúde e de comunicação, quem sabe ouviremos mais pessoas que pensam desta mesma forma, porém se autoimpuseram a lei do silêncio. Por vergonha de se declararem abandonados justamente por aqueles a quem mais se dedicaram até então. 
É necessário aprender a enfrentar o que constitui perigo, alto risco para a saúde moral e emocional para cada faixa etária. 
Temos previsão de que, chegados ao ano de 2.035, no Brasil haverá mais pessoas com 55 anos ou mais de idade, do que crianças de até dez anos, em toda a população. E, com certeza, no seio das famílias. 
Estudos de grande envergadura em relação ao envelhecimento populacional afirmam que a população de 80 anos e mais é a que vai quadruplicar de hoje até o ano de 2.050. 
O diálogo, portanto, intra e intergeracional deve ensaiar seus passos desde agora. 
O aumento expressivo de idosos acima dos 80 anos nas políticas públicas ainda não está, nem de longe, sendo contemplado pelas autoridades competentes. 
As medidas a serem tomadas serão muito duras. Ninguém de nós vai ficar de fora. Como não deve permanecer fora da discussão sobre o envelhecimento populacional mundial e as estratégias para enfrentá-lo.


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