Continuando a arrumação dos meus inúteis papéis, me deparo com uma crônica de Lya Luft para a revista Veja, em 04 de julho de 2007 !
“Não vou pra Pasárgada” é o título e por se manter atual (cinco anos não são nada neste país) pensei em postar em um dos meus blogs mas... cadê Internet?! Tempo nublado...ameaça de chuva... acho que tô querendo muito...
Liguei para o provedor/distribuidor, sei lá como se chama... agora “modernizado”, então?...
Uma voz feminina atende com toda gentileza e aquele indefectível ‘senhora’ pra cá... ‘senhora’ pra lá... Pergunta pelo número do protocolo (!) ... que protocolo? Eu ainda não falei nada... Enfim, uma palhaçada. Não diz o que está acontecendo, não informa nada sobre a falta de conexão... mas a conta mensal continua chegando e sendo paga em dia.
Dá uma raiva...
Eu é que estou querendo ir ‘pra Pasárgada’ !
Não vou pra Pasárgada
Lya Luft
Eu já estava de malas prontas: ia pra Pasárgada (para quem não se recorda, é o reino feliz inventado por Manuel, o Bandeira; para quem não sabe, ele foi um poeta maravilhoso). Queria escapar deste reino das frases infelizes e atitudes grotescas, dos reis feios e nus, das explicações cabotinas, da falta de providências e de autoridade, da euforia apoteótica de um lado e da realidade tão diferente de outro.
Pasárgada podia ser um bom lugar, onde se acredita nas instituições e nos líderes, onde vale a pena ser honrado e os malfeitores vão direto para a cadeia, onde se tomam providências antes que tudo desabe. Lá, ao contrário daqui – em que a manada se divide entre os ingênuos, os que sabem das coisas mas se conformam e os aproveitadores –, autoridade serve para cuidar do bem do povo, decoro é simplesmente decência, seja em algum cargo, seja na vida cotidiana de qualquer um.
Na minha nova pátria eu tentaria não escrever mais sobre o que por estas bandas tem me angustiado ou ameaça transformar-se num tristíssimo tédio: sempre os mesmos assuntos? Mandaria só questionamentos sobre o que faz a vida valer a pena: as coisas humanas, como família, educação, transformações, relacionamentos e separação, responsabilidades e escolhas, alegria, vida e morte, incomunicabilidade e o mistério de tudo – até a dor (mas que seja uma dor decente).
Nem problema de transporte eu teria: para Pasárgada se viaja com o coração e o pensamento. Ainda bem, pois de avião seria loucura e risco. Desses meses todos me ficou inesquecível o trabalhador humilde cochilando numa cadeira de aeroporto que, entrevistado sobre toda a confusão, respondeu: "A casa já caiu, o brasileiro tem de se conformar". Ninguém faz nada? – perguntam-se as pessoas, no limite de sua capacidade de espanto. A impressão que estávamos tendo, nós, comuns mortais, era que resolver problemas e impor ordem importava bem menos do que distribuir ilusões como quem distribui pirulitos. É para rir ou para chorar? Ora rimos, ora choramos, esse é o novo jeito brasileiro de ser.
Cresce a economia, encolhe a respeitabilidade; pisca uma luzinha de esperança, mas a seriedade extraviou-se. Poucos andam à sua procura. Aumenta o isolamento dos homens e mulheres públicos respeitáveis, que mais parecem dinossauros sobreviventes de um tempo em que seria totalmente impensável o que hoje é pão nosso de cada dia. Eu ia embora porque enjoei dessa repetição obsessiva de fatos que provocam insônia no noticioso da noite e náusea no café-da-manhã. Ia partir sem endereço, sem telefone, sem e-mail. Levaria comigo pássaros, crianças e esta paisagem diante da minha janela (com nevoeiro, porque aí é de uma beleza pungente). Levaria família, amigos, livros, música e o homem amado. Ah, e as minhas velhas crenças de que não somos totalmente omissos ou sem caráter, portanto este país ainda teria jeito, embora neste momento eu não tenha muita fé nisso.
Achei que em Pasárgada eu correria menos risco de me tornar descrente: eu, que detesto o ceticismo e não vivo bem com os pessimistas, agora tenho medo de me contagiar. Podia me livrar da suspeita de que por trás de tudo isso existe algo muito sério, gravíssimo, que nós, rebanho alienado, desconhecemos. Quem sabe até terminasse o romance que venho escrevendo, num compasso de desânimo que nada tem a ver com literatura: nasce do meu amor por este país, ao qual dei meus filhos e meus netos para nele crescerem.
Mas então, entre lideranças que negavam qualquer problema, fazendo afirmações estapafúrdias e divertindo-se talvez com nossa agonia, soprou um vento de lucidez e autoridade – parece que as coisas se reorganizam. Botar a casa em ordem ao menos nos aeroportos não podia ter levado tanto tempo, pobres de nós, mas hoje não precisarei ter medo se um de meus filhos viajar de avião. Amanhã é um enigma (sabe se lá o que vai acontecer no breve intervalo entre escrever esta coluna e ela ser publicada).
E assim, na última hora, decidi ficar. Acho que me sentiria como quem deserta de um grupo com o qual tem laços muito fortes: meus leitores. Os que me acompanham, os que pensam diferente e até os indignados – às vezes por terem lido algo que nem estava ali. Todos são importantes para mim. Com eles tem sido imensamente estimulante partilhar alegrias e preocupações, descobertas ou receios. Afinal, somos irmãos, filhos desta mãe, que, com decoro, firmeza e vontade, será melhor do que qualquer Pasárgada inventada.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário