"(...) Livres do fardo da decisão e da intenção, navegando em nossos mares interiores, assistimos como se fossem atos de outra pessoa aos nossos diversos movimentos e admiramos sua involuntária excelência. Que outra razão eu poderia ter para escrever isto, este irrisório diário de uma concièrge que está envelhecendo, se a própria escrita não tivesse muito a ver com a arte da ceifa?
Quando as linhas se tornam seus próprios demiurgos, quando assisto, qual um milagroso ato inconsciente, ao nascimento no papel de frases que escapam à minha vontade e que, inscrevendo-se na folha apesar de mim, ensinam-me o que eu não sabia nem acreditava saber, gozo desse parto sem dor, dessa evidência não concertada, que consiste em seguir sem esforço nem certeza, com a felicidade dos espantos sinceros, uma pluma que me guia e me transporta.
Então, tenho acesso, na plena evidência e textura de mim mesma, a um esquecimento de mim que confina com o êxtase, e sinto a bem-aventurada quietude de uma consciência espectadora. "
* * *
MURIEL BARBERY in "A elegância do ouriço", S. Paulo, Cia. das Letras, 2008, p. 132-133
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