Mar adentro
Texto embasado na resenha de Marta Kanashiro
A obra recebeu 14 prêmios Goya, dois prêmios no European Film Awards, um Grande Prêmio do Júri e um Volpi Cup de melhor ator para Javier Bardem, que interpreta o protagonista.
E a lista de premiações não acaba aí. Recebeu um Oscar, um Globo de Ouro e um Independent Spirit Award, os três na categoria de melhor filme estrangeiro.
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Da janela, uma verde paisagem traz o vento a remexer as cortinas e os desejos de liberdade, de movimento.
Daquela abertura da janela, o mundo todo se descortina a Ramon Sampedro.
Já na primeira cena do filme espanhol Mar adentro, o espectador é colocado no lugar do protagonista, diante dessa janela e dos desejos, sonhos e impossibilidades que se prefiguram.
A imagem será usada no decorrer do filme como recurso simbólico, uma fronteira a ser ultrapassada para alçar belíssimos voos oníricos aos quais o personagem nos leva e que são sua única possibilidade de deslocamento.
A câmera é o seu olhar, e também o do espectador.
Um espécie de jogo com o dentro e o fora, o colocar-se no lugar do outro e depois ser seu observador, e com outros duplos, a vida e o movimento versus a morte e a paralisia, para construir jogos comoventes que envolvem, seja pela sensibilidade no tratamento do tema da eutanásia, pela fotografia ou a trilha sonora.
Seu caso foi levado aos tribunais em 1993 para conseguir a legalidade da eutanásia, mas o pedido foi negado.
Na carta de Sampedro destinada aos juízes, em 13 de novembro de 1996, desdobra-se uma ideia que aparece repetidas vezes no filme: “Viver é um direito, não uma obrigação”.
Assim, Ramón coloca em cheque a regulação da vida e da morte pelo Estado e pela Igreja e acusa “a hipocrisia do Estado laico diante da moral religiosa”.
O debate com a igreja sobre eutanásia aparece no filme na figura de um padre, também tetraplégico, que resolve visitar Sampedro.
Como a escada para o segundo andar, onde se encontra o protagonista, é muito estreita e não permite que passe a cadeira de rodas do padre, os dois comunicam-se via um seminarista, que corre de um lado a outro dando recados com uma expressão tensa, ansiosa e confusa, como se estivesse prestes a submergir numa profunda crise existencial e religiosa. Até que o padre e Sampedro passam a conversar aos berros e sem mediação, de um lado falando-se da importância de manter a vida, de outro, denunciando-se que a Igreja Católica não tem moral para falar de respeito à vida depois da Inquisição.
O personagem de oposição direta ao padre é a advogada Julia, que quer cuidar do caso de Sampedro. Se por um lado o padre, pelo seu estado físico e representando a Igreja, parece ter legitimidade para tentar dissuadir o protagonista da ideia de eutanásia, a advogada Júlia, portadora de uma doença degenerativa hereditária (Cadasil), que se caracteriza por acidentes vasculares recorrentes que conduzem à invalidez e demência, procura trazer a discussão e a legitimação do caso para o plano racional, individual e não dogmático.
Ao mesmo tempo, Júlia também é o canal entre o espectador e as poesias, as viagens e toda a vida de Sampedro antes do acidente. Juntos escrevem um livro, partilham cigarro, trocam beijo, afeto, impossibilidades, desejos, frustrações e têm a morte como finalidade.
Momentos tensos, de debate, momentos de ternura e da impossibilidade do contato físico, a dor da família de Sampedro, mas também a do protagonista.
Quando em 1998, Ramón consegue encontrar, na figura da personagem Rosa, “alguém que realmente o ame e o ajude a morrer”, ele deixa um testamento concluindo o argumento da vida como obrigação, e aliando a ela um debate que sinaliza as tensões e as questões de poder que permeiam a vida e a morte:
“Srs. jueces, negar la propiedad privada de nuestro propio ser es la más grande de las mentiras culturales. Para una cultura que sacraliza la propiedad privada de las cosas – entre ellas la tierra y el agua – es una aberración negar la propiedad más privada de todas, nuestra Patria y Reino personal. Nuestro cuerpo, vida y conciencia. Nuestro Universo".
A questão da eutanásia destacou-se não apenas pelo sucesso de Mar Adentro e do filme norte-americano Menina de ouro (que trata do mesmo tema), mas também porque, enquanto os dois concorriam ao Oscar, na mesma época desenrolava-se o caso da norte-americana Terri Schiavo, que morreu após decisão judicial para que fosse suspensa a alimentação artificial que a mantinha viva há 15 anos.
A ampla discussão que se deu desde então deixou claro que, com exceção de países como Holanda e Bélgica, que aprovaram leis de eutanásia, esta é praticada de forma ilegal mas recorrente, em vários hospitais do mundo.
No auge da repercussão, o caso levou o já convalescente papa João Paulo II, que sofria de uma doença degenerativa incurável, a divulgar uma comunicação para mobilizar a opinião pública contra a eutanásia.
Ramona Maniero (figura real) confessou ter ajudado Sampedro a tomar cianureto para morrer.
A confissão veio depois de sete anos do ocorrido, quando o delito já estava prescrito e ela não poderia mais ser julgada. Ramona era considerada a principal suspeita da morte de Sampedro e chegou a ser presa, mas foi solta por falta de provas.
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O filme nos faz pensar ainda nas diversas maneiras de conceber o amor.
Por exemplo, vemos a história de Ramón através das diferentes mulheres que rodeiam sua cama. Primeiro, o amor protetor de Rosa, moradora da pequena cidade e curiosa da situação de Ramón; estabelece-se uma forte amizade entre os dois.
Depois, com Julia, percebemos uma conexão intelectual; compartilham preocupações similares e concepções totalmente distintas da vida e da morte.
Outra é a relação pai-filho de Ramón com seu sobrinho.
Também é muito importante a relação de amor e desentendimento fraternal entre Ramón e José.
E ainda a relação com sua cunhada, de absoluta cumplicidade, maternal, onde as palavras são quase desnecessárias porque se entendem com um olhar.
Além disso, "Mar adentro" é um dos versos de um poema de Ramón dizendo que o mar lhe deu a vida e o mar a tirou. Para Ramón, o mar é, também, a sensação de escape. É essa linha do horizonte que nunca se acaba, representando o infinito.
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O final está implícito no texto; achei triste, melancólico e irônico (o destino apronta, viu?)
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