domingo, 18 de fevereiro de 2018

Sobre Intervenção RJ

Babel
Sonia Zaghetto, 18 de fevereiro 2018

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Ilustração: Pieter Bruegel. A Torre de Babel.

A intervenção num Rio de Janeiro em ruínas soou como socorro tardio, desconjuntado. E teve o efeito colateral de  desnudar aos últimos viciados em otimismo o que deveria ser óbvio: os problemas do microcosmo fluminense são os do conjunto do País. Sua solução? Quase utopia.

Apesar do fio de  esperança que insiste em sobreviver, sabemos que são de difícil implementação as medidas profundas, estruturais, que poderiam arrancar o Rio e o Brasil da falência generalizada em que mergulharam.

Tarefa imensa aos olhos dos cidadãos comuns, que anseiam por soluções definitivas mas também querem o alívio a curto prazo.  Essa espera nos perturba, exaure e a cada dia nos rouba a alegria, as boas maneiras, os traços básicos de civilidade.

Ao ouvir autoridades e especialistas, acabamos meio perdidos na obscuridade das teorias, que parecem flertar com a impossibilidade. É que algo nos segreda: a solução real – a que paira além das intenções manifestadas pelos homens públicos – exige o tributo do tempo, da seriedade, do planejamento e de um esforço coletivo. Tão distantes.

Sofremos por saber que estamos atrasados. É bem sabido, repetido e decorado que há leis a refazer, de modo a punir de fato a criminalidade – seja a do narcotráfico, da política envilecida, do serviço público ou dos arrastões em vias e praias. Há que se reestruturar o sistema prisional e o educacional. E há o mais difícil de tudo:  reconstruir a alma de um povo que aos poucos se distancia da ética, do bom senso e da empatia.

O que nos abate e corrói por dentro é repetir, sem eco nas altas esferas do poder, que a impunidade encoraja, que o crime louvado em prosa e verso faz discípulos e que o caráter de um povo pode ser corroído até que se instale o canibalismo moral. Somos uns solitários, apelando pateticamente a portadores de surdez voluntária.

Não há como evitar a sensação de desamparo ao constatar que o odor de sangue naturaliza a violência. Aos poucos, entorpece a alma que diariamente vê os cadáveres se acumulando. Fazer o quê? Desafoga-se o peso no carnaval, antecedido por “esquentas” e sucedido pelas micaretas que tomam o país. O torpor individual só cede na hora em que ela – a selvageria – arromba as portas, rebenta as grades, atravessa os úteros e crava balas na cabeça de um filho. Tragédia de todos os dias, devorada pela mídia e logo substituída pelo próximo infortúnio.

Na Babel em que vivemos, o ódio nos faz falar línguas diferentes. Estranhos que compartilham o berço esplêndido. Vocacionados para a imposição de opiniões e para o patrulhamento do pensamento alheio, já não nos entendemos. Pior, perdemos o pudor de declarar em altas vozes a repulsa que sentimos uns pelos outros. Um nojo coletivo que se estende para a terra generosa em que nascemos. Coitada.

No país sitiado pelo crime, o paraíso é compartilhado por abastados e miseráveis, honestos e aproveitadores, malandros e trabalhadores. Sujam o cenário os que se vendem por pouco, os que se lambuzam na corrupção, os que insuflam o ódio e toda aquela gente hipnotizada por ideologias que não resistem a avaliações primárias. Engalfinham-se estes últimos, culpando sempre os supostos adversários. Cains dos trópicos.

Na pátria do clima ameno, das terras férteis e das águas mornas, o diálogo morre, o debate fenece, o entendimento naufraga. Sobram antipatia, implicância, ojeriza, asco, animosidade, ironias, malquerenças, repugnância, aversão. Resta o fastio.

Das janelas surgem, vez por outra, faces onde o desespero aprofunda as marcas de expressão. Pertencem à parcela que acorda cedo, trabalha muito e tem a esperança como profissão.

Estes assistem ao martírio diário de uma população presa entre rajadas de armas de guerra. Escondida atrás dos postes, acocorada no chão da Linha Vermelha, emparedada nas escolas e casinholas, gritando de susto, de medo e de revolta. Quando cessa o ruído dos tiros, resta apenas o soluço de mães que mal conseguem ficar de pé. Esmagadas pela dor, cambaleiam, amparadas, enquanto se arrastam em direção a caixõezinhos cobertos de flores.

Esse rio de dores, correnteza salgada de tantas lágrimas, só verá a recuperação quando a coletividade, exausta de intermediários, se erguer contra tanto descalabro.  Na urna, na lida diária, nas coisas grandiosas e nas miúdas, falando a língua da colaboração para o bem comum. Uma tarefa de Hércules, dado o atual cenário. Por isso nos parece quase inalcançável.

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