quarta-feira, 2 de abril de 2014

Érico Veríssimo e...coincidência


Há alguns meses estabeleci para mim mesma a rotina de releitura de clássicos brasileiros que coloriram a minha infância (por que não?) e juventude contribuindo - muito - para a formação de alguém que encontra, na ficção, a explicação para muitas situações da chamada vida real.

Não se escreve mais assim, é evidente. Os tempos mudaram... e aí vamos nós com a cantilena da vez.

No momento, estou às voltas com Érico Veríssimo e suas memórias em "Solo de clarineta". Absoluto encantamento.

Estranho é que, coincidentemente hoje, quando uma amiga está se desvelando em tratar de uma cadelinha encontrada na rua em péssimo estado, eu estava justamente numa parte do livro que narra o aparecimento de um cachorrinho também precisando de cuidados. É verdade e só me lembrei disso ao retomar a leitura. Pode ser facilmente comprovado pelos diálogos de hoje no facebook.
Nem vou enviar esse texto agora. Essa minha amiga está pesarosa, preocupada e lutando muito pela vida do pobre animalzinho.

São, novamente, aquelas coisas de sincronicidade que às vezes comento aqui...

Não resisto e, para aqueles corações tocados pelo amor aos animais, o trechinho de um episódio que considero dos mais puros, ingênuos e sinceros:

"(...)
Um dia, encontramos estendido na rua um cachorro vira-lata. Verificamos que tinha uma das pernas quebradas, pois fora atropelado por uma carroça vinda de uma das colônias italianas do interior do município.
- O que é que vamos fazer, doutor? - perguntou Estêvão, olhando para mim.
- Encanar a perna do paciente - respondi.

O pobre animal, talvez filho dum fox terrier com uma cadela sem pedigree (ou vice-versa), gania baixinho. 
Levamo-lo com todo cuidado para o pátio de nossa casa, arranjamos duas talas de madeira e com elas encanamos a perna de nosso acidentado, amarrando-as com tiras de pano e barbantes. 
- Temos de arranjar um nome pra ele - sugeriu Celso.
- Pitoco - sugeriu meu irmão. - Olhem só o rabinho dele...
- Pois eu te batizo, Pitoco, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo - disse Estêvão, com voz eclesiástica. E todos (menos Celso) dissemos juntos: "Amém".
 O caçula do quarteto quis saber o que significada "amém". Ninguém soube explicar-lhe.
Colocamos o vira-lata dentro duma caixa de madeira forrada de palha e dali por diante todos os dias levávamos-lhe comida e água.  
Semanas depois tiramos as talas, e Pitoco começou a caminhar sem manquejar. Ficamos orgulhosos de nossa proeza ortopédica. Pitoco nos olhava com seus olhos lustrosos de uma simpatia que poucos membros da raça humana nos pareciam capazes. 
Daí por diante passou a ser um membro do bando. Instalou-se na casa dos Veríssimo, dormia uma noite na minha cama, na seguinte na do meu irmão. 
Mas se acontecia minha mãe acender a luz do quarto, no meio da noite, Pitoco imediatamente saltava para o soalho, antes que D.Bega o repreendesse. 
Todas as manhãs acompanhava-me até a porta da escola, no seu trote macio e faceiro, e quando eu entrava no edifício ele fazia meia volta e tornava à casa.  
Quando, terminadas as aulas, eu saía da escola para a calçada, lá estava o Pitoco à minha espera, como um fiel capanga. 
Uma ternura agradecida lambusava-lhe os olhos. Parecia feliz por ter encontrado um lar, comida farta a horas certas e amigos, principalmente amigos. " 

(ÉRICO VERÍSSIMO em 'Solo de Clarineta", Ed. Globo, 1987, 18ª ed., p. 82-3)
**

E assim continua o autor relatando sua convivência e a de seus amigos com o cachorrinho Pitoco.

Não me estendo esperando que a curiosidade seja o guia para a leitura de um extraordinário romancista brasileiro e também admirável figura humana - Érico Veríssimo.

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