A pedagogia poética de “Meu pedacinho de chão”
Daniela Mercedes Kahn - 26/06/2014
O remake de “Meu pedacinho de chão” (primeira versão em 1971-72) é uma obra-prima de teledramaturgia.
Isso se deve, em primeiro lugar, à bem-sucedida parceria do autor Benedito Rui Barbosa e o diretor Luiz Fernando Carvalho com grande elenco e uma cenografia afinadíssima com o espírito da obra. Mas também ao fato de chegar à tela totalmente finalizada, o que a preservou das flutuações do ibope e das consequentes mudanças de rumo tão comuns nas produções desse gênero.
Na verdade, vários dos assuntos abordados nessa trama de folhetim retomam novelas anteriores do escritor. Representativos da crônica oscilação nacional entre o progresso e o atraso, esses temas incluem o confronto de gerações, de gêneros e de vínculos trabalhistas em cenário de dominação patronal masculina; o conflito entre o autoritarismo das velhas gerações e a ambição democrática das novas; o impacto das tecnologias modernas sobre a lavoura arcaica; o anacronismo das pequenas comunidades campestres e sua carência de infraestrutura básica; o choque dos atuais costumes urbanos com as tradições do interior rural.
A inovação do atual folhetim das seis consiste na abdicação do habitual tratamento realista desses e de outros temas, em prol de um sedutor conto de fadas. Narrada a partir de uma ótica infantil (mas nem tanto), ela evoca um esquecido vilarejo do interior paulista. Situada num colorido cenário de brinquedo, a vila de Santa Fé se converte num reino encantado. Os seus príncipes e princesas são jovens formados na capital que pretendem trazer o progresso para o lugarejo; o ogro do castelo é o coronel autoritário, enquanto a sua despachada esposa faz as vezes da fada madrinha; o capataz analfabeto veste a aura do poeta enamorado, o bufão é personificado com malandragem pelo seu auxiliar. Complementam o quadro o órfão sem-teto e a princesa mirim, filha do ogro e da fada.
Tendo em vista a sua origem, é natural que esse reino mágico não seja movido a toques de varinha de condão, e sim por ações políticas fundamentadas em bases bastante realistas. São ações que dinamizam o confronto entre tradição e inovação, oscilando entre as possibilidades e os limites da mudança.
O desejo de inovação é ilustrado por uma cena emblemática logo no primeiro capítulo: o empregado do sítio espera o filho do patrão, que chega de viagem, na estação do trem. A volta para casa traz uma bem-vinda inversão de funções: o filho do coronel empurra alegremente o carrinho de mão carregado com as suas malas e o malandro capataz.
Com efeito, o personagem Fernando, interpretado com sensibilidade, humor e vigor por Johnny Massaro, sofre uma profunda transformação da primeira para a segunda versão da novela. A mudança de playboy para engenheiro agrônomo coloca o conflito de gerações num patamar mais original do que a primeira versão. Pois, ao diploma exigido pelo pai, o filho contrapõe um outro, na verdade muito mais adequado à condição de um futuro fazendeiro rural. Diploma que o pai despreza por desconhecer a profissão. Mais que um simples conflito de gerações, o que entra em confronto são duas visões de administração rural que evoluirão para duas formas de fazer política.
Isso ainda fica mais claro ao considerarmos como o progresso adentra a pequena vila de Santa Fé. As melhorias locais se devem à iniciativa de três jovens recém- formados: o engenheiro agrônomo, seu amigo médico e a professora Juliana. O engenheiro introduz modernas técnicas de alimentação do solo, o médico constrói um posto de saúde na vila e a professora (na esteira do ensino Mobral, inspirador da primeira versão do folhetim) se encarrega de alfabetizar as crianças e os adultos do lugar.
Graças à “perfessora” Juliana, a educação passa a ocupar um lugar central na novela. A pequena escola é um templo de conhecimento e a instrução é vista como um privilégio ao qual todos devem ter acesso.
Parte da árdua missão desse folhetim é a recuperação do prazer infantil da leitura. Mas isso não é tudo! A importância de saber ler e escrever é demonstrada de forma lancinante no episódio das cartas de amor de Zelão. Concebidas com tanta delicadeza de sentimentos pelo rústico poeta, elas chegam à amada “perfessora” na forma de rabiscos e garatujas. Isso porque o “escrevinhador” Rodapé, que se encarrega da correspondência amorosa do amigo, é tão analfabeto quanto ele.
É pena que alguns temas recebam um tratamento menos ousado. Assim, em tempos áureos de reavaliação dos papéis dos gêneros, a valente Gina, na excelente interpretação de Paula Barbosa, cujo caráter espinhoso e arredio revela seu parentesco com a inesquecível Juma Marruá, é instada a abraçar a versão mais tradicional possível de feminilidade. E isso pela independente professora Juliana, que saiu da capital, para começar uma nova vida no interior. Da mesma forma, o oportuno tema da carteira de trabalho, desconhecida no campo, morre na praia, ou melhor, na roça. Mais uma vez, é a própria professora, encarregada de abrir a mente dos seus alunos, quem coloca um ponto final no assunto.
Por outro lado, caberia também ponderar a repercussão sobre uma audiência jovem, da tão enfatizada questão do beijo forçado, certamente concebida num momento em que a violência e o assédio sexual não estavam tão na ordem do dia quanto atualmente.
Se, por vezes, a própria perspectiva narrativa apela para resoluções mais tradicionais dos conflitos, do ponto de vista estético, o que se vê é um comovente casamento da fantasia com a realidade. Ao articular de forma convincente problemas muito reais com um contexto maravilhoso, “Meu pedacinho de chão” evoca com felicidade o pioneiro da literatura infantil brasileira, Monteiro Lobato. O efeito produzido é o contrário da série americana “Era uma vez…”, em que o tratamento convencional dos episódios destrói todo e qualquer resquício de magia dos contos originais que inspiraram os seus episódios.
Isto se deve, sobretudo, à boa atuação do elenco que ocupa o cenário de brinquedo. Em contraste com os diálogos realistas, as vezes até duros, a sua representação antinaturalista fornece a oportunidade de ver atores conhecidos brilhando em papéis inusitados. É o caso do lúdico casal Napoleão, formado por Osmar Prado e Juliana Paes, dois atores que surpreendem a cada novo desafio. Também o vendeiro Giacomo de Antonio Fagundes e o Pedro Falcão de Rodrigo Lombardi aderem ao humor circense. Entre a ala mais jovem, o destaque vai para o antológico Zelão de Irandhir Santos, estreante nas novelas da Globo mas seguramente já veterano na arte da interpretação. (Aliás, quem teve a ideia de fazer o personagem se movimentar como uma marionete?) E Flávio Bauraqui faz do seu Rodapé uma divertida versão brasileira do bufão shakespeariano. Bruna Linzmeyer confere à “perfessora” Juliana doses acertadas de charme e severidade. É também promissora a estreia da bela Cintia Dicker, intérprete de Milita. Determinação, humor e malandragem são as qualidades do menino Lepe de Tomás Sampaio.
Porém, ao mesmo tempo em que a história se aproxima do telespectador infantil, a estética do maravilhoso cria um distanciamento com relação à cena quotidiana brasileira tal qual ela se apresenta hoje.
É que nos tempos atuais de violência, intolerância e radicalismos, em que o Brasil escancara suas feridas sociais, as não tão remotas mazelas do coronelismo se fazem mais amenas na evocação, remetendo à irrealidade do universo do faz-de-conta. Pensado sob esse aspecto, a roupagem de conto de fadas se revela profundamente irônica. Devidamente confeitadas em azul e rosa, as pílulas amargas da história do país são aceitas com maior facilidade.
Nos dias que correm, as doces lições de cidadania e direitos humanos do mestre Benedito Rui Barbosa são particularmente bem-vindas. Oxalá, o seu efeito seja plural e duradouro. Que as pessoas de boa vontade do reino de Santa Fé despertem em crianças e adultos o gosto pela instrução, pelo saber que alarga horizontes tornando-se a base indispensável para as demais conquistas pessoais e sociais.
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Daniela Mercedes Kahn é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP. É autora de A via crucis do outro: identidade e alteridade em Clarice Lispector, tradutora, redatora e revisora de textos. Atualmente faz o pós-doutorado sobre a representação das mudanças sociais no teatro alemão da época de Goethe na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.