domingo, 22 de junho de 2014

Afinidade

Arte:  Edward Hopper
"Não tenho jeito pra esse negócio de amor. Acho lindo, acho lindo nas canções... 
Mas na verdade, assim, no tempo duro de um dia depois do outro, o amor toca desafinado para mim, obrigatório, repetido, música com refrão meloso.

Sou dessa gente que precisa ser só, mesmo em comunidade, como unidade.

O sol que bate agora reacende aqui dentro uma saudade dolorida do que já foi e do que sequer aconteceu. Minha cidade perdida, minha casa na infância...

Essa saudade, para mim, é o que mais se parece com o que tanta gente chama de amor. 
É só o que eu tenho, moça. E é tão pouquinho que mal dá pra mim.

É um foguinho de palha que eu tento — ah, como eu tento! — alimentar e espalhar e incendiar o quarteirão. Mas não dá, minha amiga. Não dá.

Meu amor anda pequeno.

É uma saudadinha que dói mansa, um fio de água, um cheiro distante, um raio morno de luz patética quase apagando. É muito pouco. 

Preciso ir adiante, abrir o portão e liberar os cachorros que vivem cá dentro de mim. Se os deixo por aqui, trancados em casa, uma hora eles terão destruído tudo. 
Preciso conduzi-los à rua, deixá-los mijar nos postes, tombar as latas, rasgar os sacos, revirar o lixo alheio.
E para isso eu tenho de ser só."

ANDRÉ J. GOMES - In  'Revista Bula' 22 de junho 2014


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