quarta-feira, 6 de abril de 2016

Primeiro de Abril - Roberto DaMatta

1º de abril
Roberto DaMatta, O Globo
06/04/2016 - 16h08

Sagrado leitor, eu confesso que roubei, tramei, colei, menti e pequei por minha culpa. Minha máxima e mais absoluta, vergonhosa e indesculpável culpa!

Aliás, dizendo mais abertamente, eu não só menti como saltei de bonde andando, pulei muro, matei passarinho, roubei goiabas do quintal dos vizinhos, comi os chocolates dos irmãos mais novos, usei escondido as gravatas do papai, roubei para ganhar um campeonato de futebol de botão e fiquei muito tempo no banheiro com as garotas do Vargas, um desenhista de “pin-ups” de quem o Waltinho tinha uma coleção que ele emprestava ou alugava aos amigos.

Mas minha maior aventura nessa misteriosa, irremovivelmente humana e interminável área foi quando espiei a belíssima mulher do nosso mal-encarado vizinho, o capitão de mar-e-guerra Rodoaldo mudando de roupa e com as pernas bambas de nervoso quase cai do telhado. Papai brotou na varanda empunhando o seu niquelado revólver Smith & Wesson calibre 38-duplo e, não fosse o seu grito irritado de “Quem está ai em cima?!”, eu provavelmente não estaria tirando esse 1º de abril que tem meu infinito “isso” sendo filtrado pelo meu pequeno “eu”.

Também colei muito nas provas de matemática, latim e francês e mais ainda nas de física e química, que eram territórios de um outro povo o qual falava uma língua que eu jamais entendi.

No quesito da inveja eu até hoje peco brutal e exageradamente, porque fui o “irmão mais velho", o que dá o exemplo, não pode ser egoísta e é sempre o culpado das brincadeiras mais perigosas. De tal modo fui perseguido por esse dever que até hoje pouco distingo generosidade de correção. Em consequência, sou perseguido por um tirânico super-ego — por um conjunto de regras morais que liquidaram o meu sono quando estilhacei com uma pedra um vidro de janela, imitando o Garoto do filme de Carlitos e, como sobremesa, beijei por interesses “baixos” a inocente Lurdinha que estava trocando de roupa com a porta aberta.

Falei mal, caluniei e intriguei como é hoje moda e ganha-pão no Brasil. E como não estamos na tal “pátria educadora", mas no “país dos ladrões", confesso que roubei muito do bolso do paletó do papai e da bolsa de mamãe. Foram tantos trocados que, mesmo considerando a mentirosa e imoral folha corrida deste governo, se tais trocados fossem somados, dava para comprar um bom vinho comemorativo da vitória na sacrossanta eleição que foi vencida graças às mentiras contadas ao povo bom e fiel. Afinal, ele não deve ser cultivado por escolas e hospitais, mas cuidado pelas obras e pelos pixulecos pagos (e recebidos) dos nossos compadres miliardários que são a glória e a graça da nossa cada vez mais densa desonestidade e má-fé.

Imagina, leitor, se algum dos nossos barões — do Legislativo, do Judiciário ou do obviamente solitário e, por isso mesmo, totalmente surtado Executivo, mais os nossos mais dignos, honestos e criativos empresários presos, decidissem “pregar” a todos vocês, esse meu 1º de abril confessional?

Sobraria alguma coisa? Ou todos repercutiriam as sábias palavras do intemerato ministro do STF Luís Barroso, quando disse: “Meu Deus do céu! Essa é nossa alternativa de poder. Não vou fulanizar mas quem viu a foto sabe do que estou falando". Como o ministro não sabia que estava sendo transmitido pelo sistema interno de TV, o desabafo é uma pérola de sinceridade, mais do que apropriada — com a devida vênia — de um 1º de abril deste malfadado ano de 2016!

Isso posto, eu pergunto com o devido respeito: E se nos fosse estampada uma foto de todos — isso mesmo — de todos os ocupantes dos três poderes? Quem não faria, com as devidas ressalvas de sua fé e confiança do “esse ou essa eu conheço!”, essa mesma exclamação? Ou o ministro Barroso pensa que ele ficaria de fora do axioma de Maria Madalena, devidamente acionado por Cristo e usado como artigo de fé no Brasil petista que reza: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra?”

E assim vamos para um poço sem fundo porque sem a verdade (nua e bela dentro do poço como disse um esquecido Jorge Amado no seu “Os velhos marinheiros”) não há democracia que aguente. Infelizmente, nas democracias igualitárias, o público e o particular não são separados. Esse impedimento é o que se chama “verdade” — é o peso às vezes absurdo que vem com o cargo. Nelas, o cargo não alivia ou desculpa, mas agrava e penaliza. E é justamente isso que falta neste nosso Brasil perdido no labirinto de sua incapacidade de sequer supor a existência da verdade.


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Roberto DaMatta é antropólogo

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