Texto de Pedro Alexandre Sanches
"Ela diz que é uma carta de amor. Trata-se, de fato, do único momento vibrante de um álbum de modos menores, por vezes depressivos, que a cantora batizou "Oásis de Bethânia". Em seu novo disco, a baiana Maria Bethânia reservou para o quase final a faixa "Carta de Amor", escrita por ela sob melodia do compositor de sambas de amargor Paulo César Pinheiro. Atrás do nome inofensivo, oculta-se talvez o mais monumental canto de ódio da história da música brasileira.
A suíte de sete minutos de duração intercala textos declamados com trechos em clave de samba de roda, todos eles de prumada no mínimo ameaçadora. "Não mexe comigo/ que eu não ando só", diz o refrão mais constante, cantado por ela em falsete fantasmagórico. "Não ando no breu/ nem ando na treva/ é por onde eu vou que o santo me leva." "Eu não provo do teu fel/ eu não piso no teu chão/ e para onde você for/ não leva meu nome, não." "O que é teu já tá guardado/ não sou que vou lhe dar." Amor? Só se for no registro do sarcasmo.
Na parte falada, Bethânia atira-se ao fervor religioso, num chamamento sincrético a toda e qualquer entidade, humana ou inumana, que a possa proteger: Zumbi, Besouro, o chefe dos tupis, tupinambá, erês, caboclo boiadeiro, mãos de cura, morubixabas, cocares, arco-íris, zarabatanas, curare, flechas, altares, o escuro da mata escura, o breu, Jesus, Maria, José, todos os pajés, o menino-Deus, o poeta, a rainha do mar, o baile das ondas, o ouro de Oxum, o raio de Iansã, o Cruzeiro do Sul, a tocha da fogueira de João, as Três Marias, o esplendor das nebulosas, a forja de Ogum, o calor da lava dos vulcões de Xangô, Marta, Lázaro, a palma da inspiração de Caymmi, o terço de Fátima, o cordão de Gandhi, o oásis de Bethânia. O céu de Suely?
Se amor e fervor se entrelaçam nos chamamentos, a explosão de rancor está por vir, e extravasa os refrões rumo ao texto cuspido. "O veneno do mal não acha passagem em meu coração." "Medo não me alcança, no deserto me acho, faço cobra morder o rabo, escorpião virar pirilampo." "Onde vai, valente? Você secou, seus olhos insones secaram. Não veem brotar a relva que cresce livre, verde, longe da tua cegueira." "Ninguém te escolhe, você pisa na terra mas não a sente, apenas pisa, apenas vaga sobre o planeta." "Você é o oco do oco do oco do sem-fim do mundo." "Eu posso engolir você, só pra cuspir depois."
O endereço da canção pertence ao universo íntimo da poeta, não nos é dado conhecê-lo. Nos resta especular. Dirige-se a um ex-amor? A algum inimigo dentro ou fora da música? À política? Aos críticos musicais? À mídia voraz e onívora que arrasou com o projeto de poesia pelo qual a artista fora premiada com o direito de captar patrocínios com apoio estatal? A quem afinal Bethânia estaria desejando tanto fel vestido de bem, tamanho ódio travestido de (carta de) amor?"
(...)
Carta de Amor
Texto:Maria Bethânia
Música: Paulo Cesar Pinheiro
Não mexe comigo, que eu não ando só,
eu não ando só, que eu não ando só
Não mexe não.
Eu tenho Zumbi Besouro, o chefe dos tupis
Sou tupinambá, tenho erês, caboclo boiadeiro,
mãos de cura, morubichabas, cocares, arco-íris
zarabatanas, curares, flechas e altares.
A velocidade da luz no escuro da mata escura
O breu, o silêncio, a espera.
Eu tenho Jesus, Maria e José,
todos os pajés em minha companhia.
O Menino Deus brinca e dorme nos meus sonhos.
O poeta me contou.
Não mexe comigo, que eu não ando só,
eu não ando só, que eu não ando só.
Não mexe não.
Não misturo, não me dobro.
A Rainha do Mar anda de mãos dadas comigo,
me ensina o baile das ondas e canta,
canta, canta pra mim.
É do ouro de Oxum
É do ouro de Oxum
que é feita a armadura
que guarda o meu corpo,
garante meu sangue, minha garganta.
O veneno do mal não acha passagem
E em meu coração
Maria acende Sua luz, e me aponta o caminho.
Me sumo no vento, cavalgo no raio de Iansã,
giro o mundo, viro, reviro.
Tô no Recôncavo, tô em Fez,
voo entre as estrelas,
brinco de ser uma.
Traço o cruzeiro do sul
com a tocha da fogueira de João Menino,
rezo com as Três Marias,
vou além...
Me recolho no esplendor das nebulosas,
descanso nos vales, montanhas,
durmo na forja de Ogum,
mergulho no calor da lava dos vulcões,
corpo vivo de Xangô.
Não ando no breu
nem ando na treva
e por onde eu vou
o Santo me leva.
Medo não me alcança,
no deserto me acho,
faço cobra morder o rabo,
escorpião vira pirilampo.
Meus pés recebem bálsamos,
unguento suave das mãos de Maria,
irmã de Marta e Lázaro,
no oásis de Bethânia.
Pessoa que anda só, atente ao tempo
Não comece nem termine,
e nunca é sempre,
é tempo de reparar na balança
de nobre cobre que o rei equilibra,
fulmina o injusto, deixa nua a justiça
Eu não provo do teu fel,
eu não piso no teu chão
E pra onde você for
não leva o meu nome não
Aonde vai valente?
Você secou,
seus olhos insones secaram,
não veem brotar a relva que cresce livre
e verde, longe da tua cegueira.
Seus ouvidos se fecharam
a qualquer música, qualquer som,
nem o Bem nem o Mal pensam em ti,
ninguém te escolhe.
Você pisa na terra mas não sente
Apenas pisa,
apenas vaga sobre o planeta,
já nem ouve as teclas do teu piano.
Você está tão mirrado
Que nem o diabo te ambiciona.
Não tem alma.
Você é o oco do oco, do oco do sem fim do mundo.
O que é teu já tá guardado
Não sou eu que vou lhe dar,
Eu posso engolir você
só pra cuspir depois.
Minha fome é matéria que você não alcança
desde o leite do peito de minha mãe
até o sem fim dos versos,
versos, que brotam do poeta
em toda poesia
sob a luz da lua que deita
na palma da inspiração de Caymmi.
Se choro – quando choro –
e minha lágrima cai,
é pra regar o capim que alimenta a vida.
Chorando eu refaço
as nascentes que você secou.
Se desejo, o meu desejo faz subir marés de sal,
e – sortilégio - vivo de cara pra o vento na chuva
e quero me molhar.
O terço de Fátima e o cordão de Gandhi
cruzam o meu peito.
Sou como a haste fina
que qualquer brisa verga,
mas nenhuma espada corta
Não mexe comigo, que eu não ando só
Eu não ando só, que eu não ando só.
Não mexe comigo !
* * *
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