Já disse aqui, muitas vezes, que tenho minhas restrições quanto à programação de TV; prefiro assistir a filmes ou programas de entrevistas.
Ontem liguei a TV mais para ter um som de vozes na casa - faço isso às vezes...
Estava no Canal Brasil que assisto sempre. Ao ouvir um depoimento em linguagem simples mas correta e olhando a imagem de uma pessoa comum, interessei-me pelo programa.
Gostei tanto que procurei na internet e encontrei dois textos sobre este documentário. Aí estão. Vale a pena.
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A uma quadra da praia, um edifício grande, de janelas largas, como tantos outros de Copacabana, tornou-se um endereço famoso.
O Edifício Master, na Rua Domingos Ferreira 125, foi cenário do documentário homônimo do cineasta Eduardo Coutinho.
Produzido em 2002, o longa apresentou histórias de 37 moradores do prédio.
Revelar como cada personagem conduzia sua rotina nos conjugados espalhados por enormes corredores rendeu ao filme premiações em vários festivais nacionais e internacionais de cinema.
— Queríamos um prédio assim, gigantesco, que, como qualquer lugar cheio de gente, reúne realidades muito diferentes. Todos vivem perto uns dos outros, mas, em sua maioria, são solitários — analisa Coutinho, dez anos depois.
E como vivem essas pessoas hoje?
De volta ao mesmo lugar, o cenário é outro. Nos corredores, agora claros e ventilados, passam poucos moradores da época do filme. Esses personagens guardam com carinho lembranças das gravações e alguns ainda são reconhecidos nas ruas.
A fachada gradeada continua a mesma, mas o interior demonstra que o tempo passou e as coisas mudaram — para melhor.
O Master, que durante muitos anos ficou conhecido como um edifício no qual a confusão batia ponto, virou um lugar calmo e cheio de regras. Uma televisão de 42 polegadas instalada na portaria exibe imagens de todas as áreas comuns do prédio.
O filme mostrou o homem que é responsável pela mudança: o síndico Sérgio de Carvalho. Na função desde 8 de abril de 1997 (data enfatizada no longa e na entrevista dada ao GLOBO-Zona Sul), o administrador sintetiza sua gestão com a frase “Eu vou de Piaget (pensador), e, quando não funciona, parto para o Pinochet (ditador)”.
— A ironia do destino é que nunca pensei que viraria síndico. Sou há 15 anos, em tempo integral — diz Carvalho, orgulhoso.
Após o sucesso do filme, pesquisas de professores e universitários do Rio e de outros estados passaram a fazer parte da rotina do Master. No entanto, grande parte dos 37 moradores mostrados no longa não mora mais ali. Em dois dias de visitas ao condomínio, a equipe de reportagem encontrou apenas seis deles.
Responsável pela pesquisa do filme e autora do livro “O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo”, Consuelo Lins lembra que a equipe de produção alugou um apartamento e batia de porta em porta em busca de boas histórias.
— No começo foi muito difícil, as pessoas estavam desconfiadas e não encontrávamos personagens interessantes. Nossa impressão era que o filme seria insuportável — revela Consuelo.
No mesmo ano, “Edifício Master” ganhou o Kikito de Ouro de melhor documentário do Festival de Gramado e se tornou uma referência.
— O maior mérito do filme foi ter mostrado que cada morador inventou meios para escapar do cotidiano difícil — diz Consuelo.
Como eram e como estão os outros personagens:
José Carlos e Dalva: juntos e felizes
Para receber a equipe de Coutinho, o contador José Carlos e sua mulher, Dalva, prepararam uma pequena tábua de frios. Ele estava desempregado e disse que faria bicos para pagar as dívidas. Moravam há poucos anos em Copacabana, e ele contou que se sentia discriminado pelos amigos da Zona Norte: “Acham que, por morar aqui, sou rico.” Hoje, o casal continua firme e forte, e completou 20 anos de união. A cadela Aretha Franklin ainda faz companhia aos dois. José Carlos se lembra do cigarro de Coutinho sempre aceso e da festa que marcou o fim das gravações. Administrador de um escritório de advocacia, diz que vale a pena viver em Copacabana, onde fez muitas amizades: “Saio do metrô e demoro horas para chegar em casa.”
Lúcia: ‘Muitas pessoas me reconheciam na rua’
Nascida e criada no prédio, Lúcia abriu, para as lentes de Coutinho, o pequeno apartamento no qual vivia com a companheira Rita e a mãe. Sorridentes e levemente inibidas diante das câmeras, elas falaram da rotina a três. Feliz, Lúcia conta, no filme, que Rita havia começado a cozinhar e a ajudar em outras tarefas domésticas. De lá para cá, sua vida mudou muito. O conjugado foi reformado, seu relacionamento com Rita acabou e, há oito anos, vive com outra companheira. Sua mãe morreu em 2006. Abordada pela equipe do GLOBO-Zona Sul, prontamente aceitou conversar sobre o filme.“Foi muito bacana, as pessoas me paravam na rua para perguntar se eu era a Lúcia do Edifício Master”, diz, com saudade.
Suze: ‘Só quero saúde para ser feliz’
Nascida em Salvador, Suze morou em São Paulo antes de fixar raízes por aqui, em 1982. Seu depoimento no filme é marcado por histórias relacionadas à profissão de dançarina, que a levou a morar no Japão. Ela viveu um ano do outro lado do mundo, onde também cantava. Após hesitar por alguns instantes, arrisca uma canção em japonês. Depois de viver com um alemão, dizia estar muito feliz, afirmando que não desejava outro homem por não querer mais problema. Hoje, demonstra a mesma tranquilidade de dez anos atrás. Cantar e dançar? “Só para mim e meus amigos”, avisa. O que não mudou foi sua paixão pela vida: “Só quero saúde para ser feliz.”
Carlos: Dias mais solitários
Em 2002, Carlos e Maria Regina completavam um ano de casamento. Mais reservado do que sua companheira, ele a deixou falar sobre a convivência do casal. O documentarista foi logo ao ponto: “Vocês se gostam?”. Carlos acenou a cabeça de maneira positiva, mas Maria Regina surpreendeu ao dizer: “Já gostei mais!”. Em seguida, ela confessou que havia tentado se jogar da janela durante uma briga. A entrevista seguiu, eles afirmaram que estava tudo bem e Carlos decretou: “Nós não prestamos, mas nos amamos.” Hoje, aos 87 anos, é um homem solitário. O relacionamento chegou ao fim em 2004. Da época do filme, o torcedor do Bangu guarda o hábito de frequentar a praia. E diz, de forma lacônica, não esperar mais nada da vida.
Maria do Céu: As gargalhadas continuam
Moradora do Edifício Master desde os 22 anos, Maria do Céu levou aos espectadores as lembranças de antigos dias do condomínio. Ela falou sobre as constantes brigas que aconteciam entre prostitutas: “Era uma baderna.” Hoje com 75 anos, Maria do Céu continua com o sorriso fácil. “Nas gravações, era um monte de gente na minha casa e um clarão horroroso no meu rosto. Sem falar que todo mundo ficava calado. Eu não me aguentei e disse ‘ninguém vai falar nada, não?’. Depois, caí na risada.” Não lhe faltam histórias sobre o prédio. “Já vi algumas coisas esquisitas serem arremessadas e um homem descer por uma corda. Mas Sérgio conseguiu acabar com a bagunça.”
Várias histórias inesquecíveis
Boas histórias foram mostradas por Eduardo Coutinho e sua equipe em “Edifício Master”. Com o passar dos anos, alguns moradores se mudaram, outros morreram. Mas todos se tornaram personagens inesquecíveis.
Em 2002, o aposentado Henrique de Moura era viúvo há seis anos. Fã do cantor Frank Sinatra, todos os sábados ele ligava o som no último volume para que os vizinhos escutassem “My way”, canção que, segundo ele, sintetizava sua vida.
O ex-jogador de futebol Paulo Mata atuou em alguns times do Rio, como Bangu e Bonsucesso, e partiu para o exterior, exibindo seu talento no México, na França e nos Estados Unidos. Virou treinador, mas abandonou a profissão após ficar nu para protestar contra o resultado de uma partida.
A jovem Cristina Wittenstein morava com o filho Lucas. A gravidez inesperada não foi bem recebida pelo pai, e, desde os 18 anos, ela vivia no Master. “No princípio, eu odiava este prédio, achava claustrofóbico. Mas hoje eu gosto, é um bom lugar, é a minha casa”, disse.
Fernando Ferreira, o Careca, falou de seu bom relacionamento com vizinhos. Na época com 73 anos, o ex-dublê contabilizava mais de 30 novelas e filmes no currículo, que foi finalizado após um acidente.
Daniela Gasparini morava sozinha com três gatos. Ela se denominava “sociofóbica” e cheia de neuroses, dizendo que o excesso de pessoas nas ruas de Copacabana a incomodava. Em poucos momentos ela olhou para as câmeras, afirmando não ter confiança para encarar Coutinho.
Apesar da timidez, mostrou um quadro e um poema escrito por ela em inglês.
Alessandra de Souza Alves, que tinha 20 anos, assumiu ser prostituta. Mãe aos 14 anos, lembrou seu primeiro programa: “Ganhei R$ 150 e gastei tudo com a minha filha no McDonald’s.”
Quando Coutinho lhe perguntou como tomou coragem para dar esse depoimento, disse que as pessoas “têm a cabeça no século passado.” Afirmou ainda ser uma mentirosa convicta, e ensinou que o bom mentiroso deve acreditar no que diz. E acrescenta que só falou a verdade.
CIBELLE BRITO, Publicado em 16/03/2012, jornal "O Globo".
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O filme EDIFÍCIO MASTER, produção do ano 2002 é, sem sombra de dúvida, uma das mais importantes obras do cineasta Eduardo Coutinho.
Durante sete dias, Coutinho, junto à sua equipe, filmou o cotidiano dos moradores do Edifício Master, situado em Copacabana, a um quarteirão da praia. O prédio tem 12 andares e 23 apartamentos por andar. Ao todo são 276 apartamentos conjugados, onde moram cerca de 500 pessoas. Eduardo Coutinho e sua equipe entrevistaram 37 moradores e conseguiram extrair histórias íntimas e reveladoras de suas vidas.
Através dessas histórias, fica-se sabendo do passado de crimes e de prostituição do Edifício Master e da cruzada do síndico Sérgio (um dos entrevistados) para restaurar e trazer um pouco mais de dignidade para o prédio. O que, de fato, segundo alguns outros depoimentos de outros moradores, o síndico consegue.
Dessas entrevistas iniciais, nas quais se tem um panorama geral do Master – na verdade, uma necessária contextualização desse espaço, para o público espectador – passa-se a entrevistas/depoimentos um tanto quanto mais intimistas, e é exatamente através desses depoimentos que o filme expõe a sua verdadeira e principal característica enquanto obra cinematográfica: mostrar a alma dos seus personagens ou, pelo menos, tentar se aproximar dela.
As inserções de Coutinho, durante as entrevistas, existem e, às vezes, são até bastante necessárias para um bom desenvolvimento dos depoimentos. Porém, essas inserções não são constantes e nem chegam a ameaçar a narrativa das mais variadas histórias de vida de cada um daqueles moradores ouvidos.
E são exatamente essas histórias, as mais intimistas, as mais pessoais, que prendem o espectador, e não, necessariamente, aquelas de âmbito mais geral, as que falam da problemática da violência no Rio de Janeiro, mais especificamente em Copacabana, ou da contextualização do Master do passado e do presente. São as histórias de vida de cada um, os sonhos, as angústias, as mágoas, a esperança daqueles moradores, que dão vida a esse documentário.
EDIFICIO MASTER é um filme que, além de ser um dos melhores trabalhos de Coutinho, se não o melhor, é uma obra que emociona. São quase duas horas, num filme sem nenhuma trilha sonora, com uma fotografia que deixa a desejar, numa obra com um orçamento visivelmente baixo, mas que, acertadamente, o espectador vai demorar muito para esquecer aquelas histórias de vida.
Levando em consideração a tipologia do documentário, proposta por Bill Nichols – crítico de cinema americano, com vários livros lançados sobre documentários – nunca poderia se afirmar que EDIFICIO MASTER é um documentário que segue uma linha mais tradicional, aquela linha chamada por Nichols de documentário expositivo. Coutinho está muito além, neste filme, de uma mera necessidade de defender argumentos e comprová-los através de imagens. Fica evidente, em EDIFICO MASTER, a participação ativa do diretor e da sua equipe, junto aos entrevistados, o que faz com que esse filme seja considerado como um documentário participativo.
Já a linguagem usada por Coutinho, como é de se esperar num filme em que o íntimo dos entrevistados tem primordial importância, é bastante caracterizada pelo quase que constante uso do primeiro plano, sendo que, em alguns momentos, pode-se perceber, num plano de conjunto, entrevistado e diretor, assim como há os planos em que também é possível ver a reduzida equipe de filmagem de EDIFÍCIO MASTER.
EDIFÍCIO MASTER é um documentário que não tem cenas externas. O máximo que Coutinho permite que seja mostrado, do externo deste edifício, são as imagens iniciais, captadas pelas câmeras de segurança do prédio, as quais mostram a equipe chegando e entrando no Master, e uma ou outra imagem externa vista através das janelas de alguns apartamentos. E só!
Decididamente, o que está externo, além daquelas salas, daqueles quartos, além do interior daquelas pessoas, parece mesmo não importar a Coutinho. E, mesmo assim, mesmo sendo um documentário quase que cem por cento de cenas internas, é uma obra que encanta, que prende a atenção do espectador.
EDIFICIO MASTER, um filme que prima por trazer, ao espectador, todo um lado humanista de um grupo de pessoas que, normalmente, não teria chance alguma de falar, de expor seus pontos de vista, seus sentimentos… Pessoas que fazem parte de um grupo, moradores de uma grande cidade, que quase nunca são vistos, quiçá, ouvidos! E a câmera de Coutinho, junto a sua reduzida equipe, deu chances a essas pessoas de se expressarem.
In: "Cabine Cultural' - Mauricio Amorim é professor de Linguistica e Produção Textual da Universidade do Estado da Bahia, Cineasta e Colaborador do Cabine Cultural.
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