Culto do espelho
Selfie e narcisismo contemporâneo
Marcia Tiburi – (trechos) Revista Cult, Ed. 194
Não se pode dizer que a invenção da fotografia digital tenha intensificado apenas quantitativamente a arte do autorretrato.
Selfie não é fotografia pura e simplesmente, não é autorretrato como os outros.
A selfie põe em questão uma diferença qualitativa. Ela diz respeito a um fenômeno social relacionado à mediação da própria imagem pelas tecnologias, em específico, o telefone celular.
De certo modo, o aparelho celular constitui hoje tanto a democratização quanto a banalização da máquina de fotografar; sobretudo, do gesto de fotografar.
O celular tornou-se, além de tudo o que ele já era, enquanto meio de comunicação e de subjetivação, um espelho.
Nosso rosto é o que jamais veremos senão por meio do espelho. Mas é o rosto do outro que é nosso primeiro espelho. O conhecimento de nosso próprio rosto surge muito depois do encontro com o rosto do outro.
Em nossa época, contudo, cada um compraz-se mais com o próprio rosto do que com o alheio.
O espelho, em seu sentido técnico, apenas nos dá a dimensão da imagem do que somos, não do que podemos ser.
Ora, no tempo das novas tecnologias que tanto democratizam como banalizam a maior parte de nossas experiências, talvez a experiência atual com o rosto seja a de sua banalização.
Culto do espelho:
(...)
A autoimagem foi, desde sempre, fascinante. Daí o verdadeiro culto que temos com os espelhos.
A história clássica de Narciso vitimado por sua imagem na água alertava sobre o perigo de perder-se em si mesmo, o risco da autonarcotização com a própria aparência.
Assim é que Narciso é o personagem da autoadmiração, que em um grau de desmesura, destrói o todo da vida.
Representante da vaidade como amor à máscara que todos necessariamente usamos para apresentarmo-nos uns diante dos outros, Narciso foi frágil diante de si mesmo.
Não escaparemos dessa máscara e de seus efeitos perigosos se não meditarmos no sentido do
próprio fato de “aparecer” em nosso tempo.
Por trás da máscara deveria haver um rosto. Mas não é esse que o espelho captura.
(...)
No tempo da exposição total criamos a dialética perversa entre amar a própria imagem, sermos vistos e acreditarmos que isso assegura, de algum modo, nosso existir.
No tempo da existência submetida à aparência, em que falar de algo como “essência” tem algo de bizarro, talvez que, com a selfie fique claro que somos todos máscaras sem rosto e que este modo de aparecer seja o nosso novo modo de ser.
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