O poder da burrice (trechos)
Valter Nascimento - em "Obvious Magazine"
A humanidade sempre buscou classificar o saber em suas mais variadas formas. O saber científico, filosófico e artístico.
Aristóteles classificou as formas de saber, Kant e Descartes estudaram as abordagens ao saber e Hegel criou uma metodologia do saber.
Unimos esforços em saber mais, conhecer mais, propagar o saber por todos os meios.
Preservamos o saber em bibliotecas, em arquivos virtuais e em nossas mentes.
Mas pouco se sabe sobre o não-saber.
A burrice, como coisa desprendida da constelação dos saberes, não é coisa com que nos preocupemos.
Ela é o assunto encerrado de nossa roda de botequim. Fulano é burro. Ponto final. A burrice de Fulano não afeta a minha vida.
O que a internet me ensinou é que a burrice não tem limites, não tem tamanho, não é medida ou sequer classificada. Burros, ignorantes e imbecis são dentro deste balaio de gato um único monstro de muitas cabeças.
Fugimos dela exibindo a fiel confiança em nossos estudos, leituras e experiência.
Nos julgamos estar livres dela graças a nossa força cultural, o nosso orgulho e sensação de posse de um saber indestrutível.
Mas a burrice é maleável, caímos em suas armadilhas sem perceber. E ela está cada vez mais rica e bilionária, ela é poderosíssima.
Quando dizemos que tal pessoa é burra podemos estar caindo no erro de classificar todo tipo de não-saber como burrice. Não é assim.
Se Fulano não sabe ler, não é burro, mas iletrado ou ignorante.
Pode-se ser analfabeto e ainda assim ser capaz de julgar e pensar de maneira inteligente.
Há, ainda, a falta de inteligência, coisa ainda difícil de se classificar.
Como inteligência é uma coisa relativa, cada um sabe daquilo que precisa saber.
Se dizemos então que tal pessoa comete atos de burrice, ela não é essencialmente burra.
O que comete atos de burrice por não saber a verdade das coisas é ignorante, pois ignora algo, mas pode vir a descobrir novas coisas no futuro.
As terminações são muitas e os conceitos se misturam.
Quero falar apenas da burrice consciente, severa e terminal, a burrice aceita como "opinião", "liberdade de expressão", justamente a burrice mais nociva e ainda mais difícil de classificar.
Vou logo avisando que este texto é apenas uma tentativa.
Se vários filósofos falharam em classificar todo o saber do mundo, eu é que não vou tentar fazer a mesma coisa com a burrice.
O que eu quero dizer é que existe um tipo de pessoas que são burras por preferência.
Um tipo de ser humano que repete ideias equivocadas não por não saberem, mas por saberem e ainda assim ignorarem o que sabem.
São pessoas que estiveram expostas ao saber e ainda assim o recusaram. São os burros de fato.
(...)
Não ser burro não implica em nos tornarmos todos intelectuais.
A intelectualidade é fruto de um processo longo.
Para nós, gente comum, bastaria apenas questionar nossas ações mais do que as dos outros.
Não ser burro é não se colocar no lugar de vítima, é não tirar de nós a responsabilidade que temos sobre nossas vidas. É não aceitar o mais fácil, o mais lucrativo, o mais simples.
É criar o gosto pela virtude, e por virtude entenda tudo o que nos faz melhor para nós e para os outros.
É não pesar pessoas com medidas diferentes, não considerar cultura apenas o que gostamos, não achar que não saber seja mais fácil do que saber. Porque não é.
A ignorância tem seu preço. Ser burro custa caro.
Só temos uma vida para viver, só temos uma chance de fazermos as coisas darem certo.
Essa é a verdadeira sabedoria, a de saber viver. O resto é apenas burrice.
Ninguém combateu mais a burrice do que Michel de Montaigne, por isso indico alguns livros dele ou sobre ele que ensinam mais sobre a arte de viver:
- Ensaios, de Montaigne. Editora Penguin / Companhia das Letras.
- Quando brinco com a minha gata, como sei que ela não está brincando comigo?, de Saul Frampton. Editora Record.
- Como viver ou Uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta, de Sarah Bakewell. Editora Objetiva.
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