Arte: Paul Mitkov |
Continuo pensando nesses dias anteriores em que não me sinto disposta nem a escrever.
Tudo muito pessoal, muito particular mesmo.
Tenho a impressão de que, apesar da experiência de vida, da idade mesmo, ainda sou vulnerável em alguma parte do sentir.
Uma espécie de calcanhar de Aquiles, nem tão visível assim neste mundo de aparências, mas que pode ser atingido por acaso, simples acaso, sem intenção por parte de quem quer que seja.
Tenho assistido, no canal Globo News, à programação que lembra os 50 anos do início da ditadura no país e talvez esteja aí uma possível explicação para esse meu desânimo.
Sei que é necessário externar o que nos fere para que isso não se torne maior que nós mesmos.
É o caso de vários episódios da história humana como as guerras em diversos lugares, a miséria e a fome em tantas partes do mundo - "wonderful world" - perseguição, escravidão, o holocausto na 2ª grande guerra que traz ainda a vergonha e a culpa.
O distanciamento no tempo não apaga os horrores de que nós, humanos, somos capazes.
Quanto à nossa História de um passado recente agora revista, agora documentada, registros e depoimentos agora revelados, o olhar das pessoas diretamente envolvidas - de ambos os lados - sei lá, isso tudo não está me fazendo bem não...
Sinto a inutilidade de tantos posicionamentos, de tantos princípios que deveriam ser cumpridos.
Enfim, penso num poema de Álvaro de Campos (o heterônimo preferido). Vou procurar e trazer para cá:
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Encontrei:
Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
(FERNANDO PESSOA - Álvaro de Campos)
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