quinta-feira, 13 de março de 2014

De um jornal de BH



A TRAMA DO OLHAR
Déa Januzzi

Os olhos falam? Eles dizem muito para os poetas, escritores, músicos, cineastas, crianças, médicos e psicanalistas - mestres na arte de olhar além do visível.
São muitas as letras de música que constatam isso.  Edu Lobo e Chico Buarque já traduziam em "Choro Bandido": Saiba que os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão.
Vinícius de Moraes, em versos e música, se expressou em "Pela luz dos teus olhos": Quando a luz dos olhos meus / e a luz dos olhos teus / resolvem se encontrar / ai, que bom que isso é, meu Deus...
Sem contar o sábio Mahatma Gandhi, que não se cansou de avisar: Olho por olho e o mundo acabará cego.
Ou o jamaicano Bob Marley, que com a força do reggae protestou: Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra.

A psicanálise diz que o olhar antecipa o verbo, até para quem nunca enxergou com os olhos físicos, porque eles são mais do que receptores para a luz, as cores e as linhas. Mesmo os deficientes visuais de nascença sabem que o olhar vai muito além da percepção visual.  Até quem nunca enxergou tem o prazer de ver e ser visto, diz Liliane Camargos,  psicanalista, com perda progressiva de visão devido a problemas hereditários. Ela defendeu este ano na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a dissertação de mestrado Do ver ao perder de vista, que se transformou em livro de papel e e-book.

"O que impulsiona o ser humano a querer ver e ser visto é a pulsão escópica, conceito criado por Freud para designar esse impulso intimamente ligado ao campo do prazer e do desejo. A pessoa cega se preocupa com o modo como ela é vista. Gosta de saber se a cor da calça está combinando com a da blusa. Muitas vezes usa óculos escuros porque sabe que o olho dela é diferente."

A psicanálise garante que sem o olhar do outro não existimos, mas a maneira como somos olhados define o destino.
Apesar da importância de olhar e ser olhado, "a psicanálise começou no momento em que Sigmund Freud deslocou o foco de atenção do olhar para a fala do paciente, mudando o órgão do sentido do olho para o ouvido. É curioso que tenha sido por mero acaso que o pai da psicanálise descobriu as vantagens dessa mudança. Ele dizia que trabalhava melhor se não fosse olhado oito, às vezes dez horas por dia pelos pacientes. Sentado atrás do divã, ele se sentia livre para pensar, ponderar, refletir sobre o efeito que a fala do paciente exercia sobre ele e, finalmente, para construir uma interpretação," explica a psicanalista Ana Cecília Carvalho.
Na distribuição dos móveis, Freud descobriu que com o paciente deitado no divã, sem sofrer interferência das expressões faciais do analista, o trabalho associativo que deseja do analisando fica imensamente favorecido. "A surpresa foi descobrir que para captar as intenções inconscientes que nos movem - objetivo de uma psicanálise - analista e analisando devem parar de olhar."

A sabedoria de um diagnóstico médico também está no olhar.
Mesmo com toda a parafernália de que a moderna medicina dispõe para desvendar diferentes distúrbios ocultos, possibilitando intervenções cada vez mais precoces e precisas,  "o dever do verdadeiro médico é ver com os olhos e enxergar com o coração", diz o cardiologista Marcus Vinícius Bolívar Malachias.

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Fonte: Jornal "Estado de Minas", Seção 'Bem Viver' - 21 de outubro 2012.

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