domingo, 2 de junho de 2013

BANDEIRA na oficina - José Castello

Bandeira na oficina
José Castelo - O Globo, 01-6-2013

Quase sempre saio abatido de minhas oficinas literárias. Em parte, grande parte, é cansaço. Mas há uma parte de frustração. O que me aborrece? O sentimento -  talvez excessivamente severo -  de que não soube escutar meus alunos. E, sem saber escutá-los, não consegui lhes dar o que esperavam de mim. Nessas horas, um poema, um pequeno poema de Manuel Bandeira, quase sempre me volta à mente.Transcrevo-o, já que tem só nove linhas.

"O professor disserta
sobre o ponto difícil do programa.
Um aluno dorme, 
cansado das canseiras dessa vida.
O professor vai sacudi-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz
com medo de acordá-lo".  (*)

          É simples: tudo o que o aluno tem de melhor, naquele momento, para oferecer ao professor é o seu sono. O seu cansaço. Seu esgotamento. Qualquer coisa que se obrigasse a dizer, qualquer esforço que fizesse para acordar e lhe dar atenção, não seriam seus. Não passariam do desempenho de um papel. Bandeira está certo: cabe ao professor escutar, acolher, partir das coisas mais terríveis, ou mais banais, que um aluno tiver a lhe dar. Por exemplo: um sono profundo.

          Tenho como princípio _ como ideal _ chegar a minhas oficinas desarmado. Sim: deixar minhas armas de defesa, meus escudos, minha lógica protetora, na sala de espera. Chegar como se fosse uma tela branca que alguém carrega e coloca à frente dos aluinos. Ou melhor: do seu lado. Nela, os alunos poderiam inscrever (escrever) seus sonhos mais secretos. Seus desejos mais inomináveis. Sentimentos incômodos, idéias sem sentido, aborrecimentos.

         É desse material primário e não elaborado que um professor deve partir. É esse material que um professor deve saber escutar. Um professor não é um professor para modificar seu aluno, mas para ajudá-lo a ser quem é. O aluno não é um ideal do professor. Não é "sua obra". Não é uma tela em branco -  a tela em branco deve ser, deve tentar ser, o professor. Se o aluno dorme (Bandeira), o professor deve respeitar seu sono. Deve escutá-lo. Mesmo um sono quer dizer alguma coisa. É ali, naquele sono profundo, que o aluno verdadeiramente está. É dali que o mestre, se mestre mesmo pretende ser, precisar arrancar alguma coisa.

         Sim, o grande temor do mestre é colocar no aluno aquilo que não é seu. Volto a Bandeira: "O professor baixa a voz/ com medo de acordá-lo". Se é um mestre, deve saber escutar esse sono profundo. Quem deve despertar é o professor, e não o aluno. O professor deve despertar para o sono profundo do discípulo que dorme. Este sono não é gratuito, não é fingido, não é uma dissimulação. "Cansado das canseiras da vida", diz Bandeira, "um aluno dorme". Naquele sono há um cansaço e naquele cansaço uma vida que pede para ser escrita. Ser um mestre é escoltar um aluno em seu cansaço. É estar ao seu lado em seu esgotamento e em suas falhas. Não é estar à frente: não é "ser" um espelho. A tela em branca se coloca ao lado, não como a imposição de uma imagem, mas como um espaço oferecido à imagem, para que ela nele se derrame.

          Não é fácil. Nada fácil. Quase nunca, ou talvez nunca, se consegue isso. Mas é o que um mestre deve tentar. Sempre falho um pouco nesse meu esforço. Sempre interfiro. Firo. Sacudo. Acordo. É meio inevitável que seja assim, porque também eu sou imperfeito e tenho muito a aprender com meus alunos. E nem sempre consigo aprender (escutar) o que eles me oferecem. Quantas vezes tomo uma coisa pela outra! Quantas vezes tomo um sono profundo (e sincero) como um desafio! Nessa horas me aborreço, mas logo consigo entender que me aborreço comigo mesmo. Aborreço-me porque não sei ficar quieto. Porque não sei respeitar o que o outro tem a me dar. O que ele me dá, ainda que seja um sono, é o que tem de mais precioso.

          Mesmo que se trate de uma mentira (ficção). Sobretudo quando se trata de uma mentira (ficção). A mentira (ficção) é como o sonho que o aluno que dorme me oferece. A mentira é o que ele tira do que tem e deposita diante de mim. Para que eu decifre? Não, para que eu escute. A mentira é o que ele inventa (faz de si) para me dar. Professores não são críticos, não devem ser. Parecem-se mais com os velhos lanterninhas de cinema, que jogavam um frágil traço de luz na escuridão, para escoltar aquele mque o seguia. Se o aluno me oferece seu sono (escuridão), é a ela que devo acolher, é a ela que deve, mesmo precariamente iluminar. Nem sempre consigo isso. Muitas vezes saio meio aborrecido. Mas juro que tento. É o que me cabe _ mais do que isso é só intromissão, o que é bem o oposto de educação.

          Ensinar é ensinar o aluno a ser quem ele é. Bandeira está certo: se o aluno está dormindo, o professor deve aceitar seu sono e baixar a voz (autoridade) para não acordá-lo. É tão simples. Mas é o mais difícil.

*               *               *
Notinha da blogueira:  Esta crônica me fez começar a reler "Andorinha, andorinha", livro de Manuel Bandeira, em seleção e coordenação de Carlos Drummond de Andrade. Maioria dos textos em prosa.

(*) O embrião desse poema está no capítulo "Conversa de professor", no texto intitulado 'Colega de meus alunos', p. 189 da edição que possuo.

Ah, gostei muito do trocadilho do título "Bandeira na oficina" e também do duplo sentido do verbo 'dormir'.


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