"Geni e o Zepelim" faz parte da peça teatral 'Ópera do Malandro', de 1977.
Muitas vezes ouvimos uma canção cuja letra nos surpreende de início; em alguns casos, nossa memória é ativada para algo parecido 'que ouvimos ou lemos não sei onde'.
Esquecemos que os autores também podem ser influenciados por suas vivências e/ou leituras - o mais comum de acontecer - e assim, embora esta composição esteja claramente ligada a um período político nacional, percebemos os traços de uma história já contada em outro contexto político, em outro país e por um outro autor que não utilizava a composição musical.
Isto, porém, não invalida a 'releitura', pelo contrário, só vem acrescentar, agregar conhecimento e mostrar que não por acaso existe um letrista como Chico Buarque. Ele sabe o seu ofício, ah, se sabe!
Há um intertexto em "Geni e o Zepelim" e o conto "Bola de Sebo", escrito por volta de 1880 pelo francês Guy de Maupassant, sobre a guerra entre a França e a Prússia, quando muitos habitantes franceses decidiram fugir da ocupação prussiana e da obrigatoriedade de alojar os inimigos.
No conto de Maupassant, três casais burgueses, dois religiosos e uma jovem prostituta - Bola de Sebo - iniciam uma viagem em que terão que compartilhar o mesmo meio de transporte durante alguns dias, sendo forçados a conviver apesar das grandes diferenças sociais, culturais e éticas entre eles.
Os temas são os mesmos:
submissão, dignidade, generosidade - as duas personagens "Geni" e "Bola de Sebo";
conveniência e dissimulação - a cidade (na canção) e os viajantes (no conto));
autoritarismo e poder - o comandante do Zepelim e um oficial da Prússia.
Mas os contextos são diferentes.
Na canção de Chico Buarque, a meu ver, importa menos a caracterização de Geni como prostituta ou travesti; trata-se do sistema político e da alienação do povo naquele momento.
Embora os discursos sejam parecidos e tenham a mesma intenção, na canção 'Geni' não tem voz própria, é sempre descrita pelo 'narrador' ou pela cidade, enquanto no conto de Maupassant 'Bola de Sebo' acusa diretamente a falta de patriotismo dos companheiros de viagem.
Aqui, no Brasil, é impossível mesmo que "Geni" possa se manifestar. Mesmo hoje. Quem se manifesta é a "celebridade", embora vazia, inculta, olhando sempre para o próprio umbigo.
Um dos trechos que me comove nessa letra:
"Acontece que a donzela
(E isso era segredo dela)
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos."
E o final também é um "soco". Depois de livrar a população da loucura do comandante, Geni se sente aliviada e pensa que será menos maltratada dali em diante - coitada, acredita ainda no sentimento de gratidão da espécie humana...
"Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar!
Ela é boa de cuspir!"
* * *
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