quarta-feira, 19 de junho de 2013

Sim, Chico - "A gente quer ter voz ativa..."


Manifestação em Brasília - 17 de junho de 2013

Foto: Manifestação em Brasília , 17-06-2013

É claro que o contexto é diferente... Todos sabem disso. 
O mundo mudou... (chavão mais idiota) o que todos sabem também.

'Iiihhh... essa frase não serve para este momento; ficou velha.'

Calma... tente manter a calma e pense. 

Não se trata de uma frase solta. São dois versos da canção Roda-Viva, de Chico Buarque de Holanda, composta em 1967 para a peça teatral homônima.

Roda-viva 

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mais eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
No volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há 
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá 

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
**

Essa letra tem um chão histórico específico, - o regime ditatorial no Brasil.
É desse tempo que ela data e é o que esse tempo representou para a experiência brasileira que ela aborda e cifra.
Eu falei "em cifra"?
Sim, a palavra cifra tem, além da acepção comercial que conhecemos, o sentido de explicação de escrita hermética, enigmática, como as cifras musicais e, por extensão, passa a significar essa própria escrita.
Decifrar é justamente tirar a cifra, tornar o texto claro, interpretá-lo, entendê-lo.

Todo sistema autoritário representa, para a Cultura de qualquer país, o fim da liberdade de expressão.
Um meio muito utilizado para driblar a censura é a metáfora, o despistamento, a linguagem figurada, a cifra. 
Alguns escritores e jornalistas falam aparentemente de flores e rouxinóis quando, na verdade, se referem a situações de repressão político-social.

O que é roda-viva?
Roda-viva é, conforme os dicionários, movimento incessante, corrupio cortado; é ainda confusão, barulho.
O texto menciona ações frustradas pela roda-viva.

Na letra, a roda-viva está associada à morte, ao contrário do que indica a palavra.
A roda ceifa, arranca aquilo que ainda está em desenvolvimento: a gente estancou de repente ; a gente parou (de crescer) de repente.
Note-se o expressivo uso de estancar, que nos faz lembrar imediatamente de sangue.
Somos impedidos de decidir o próprio destino, de adquirir autonomia, assim  como um fluxo de sangue é estancado.
Essa espécie de rodamoinho  arrebata a voz, o destino das pessoas e a capacidade de exprimir artisticamente seu sofrimento: arrebata-lhes ainda a viola .
A roda-viva arrebata da gente a roseira há tanto cultivada e que não teve tempo de exibir tudo o que prometia.

A composição é cortada por dois movimentos: um expressa a ação empenhada, o trabalho sistemático, o desejo de ser o sujeito da própria história.
A esse movimento pertence o querer ter voz ativa, o ir contra a corrente (da roda-viva), o cultivo ininterrupto da rosa, o tocar viola na rua e a saudade de tudo isso (na medida em que a saudade pode ajudar a reorganizar o pensamento).

O outro movimento expressa a ação abortiva exercida pela roda-viva.
Esse movimento vem expresso numa frase repetida, o refrão: "Mas eis que chega a roda-viva e carrega (o que quer que seja) pra lá".
A conjunção "mas" sinaliza justamente essa mudança de direção, marca uma ação adversa.

A frase "eis que chega..." vem sempre ligada na letra a um tipo de estribilho, a uma fórmula aparentemente ingênua, que lembra as cantigas de roda: "roda mundo, roda gigante/ roda-moinho, roda pião/ o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração".

Essa fórmula, inocente na aparência, dado seu teor caótico e quase surrealista (típico de enigmas, cantigas de ninar etc.) e a referência a brinquedos infantis (roda-gigante, pião), tem o efeito de exprimir um desnorteio, uma situação absurda, fora do esquadro.
De fato, não é possível conceber a ditadura como algo natural. Ela não pertence à ordem da razão.

Esses movimentos descritos na letra são, portanto, de trabalho em curso e de sucessiva frustração.
Isso descreve muito bem a experiência nas ditaduras, tanto do ponto de vista social e político como do ponto de vista cultural.

No caso do Brasil, quando estávamos começando o exercício da democracia, é instalado o regime totalitário. Sufoca-se até a saudade (já cativa) de outros tempos.

Esse ambiente de mal-estar foi filtrado por Chico Buarque com muita cautela: era preciso despistar a censura, daí a profusão de rodas e de versos encantatórios; era preciso dizer a verdade, daí o tumulto e a sensação de frustração que vem de tantas rodas.         (Texto adaptado de uma aula - "Alô Escola")
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Dito isso, gostaria de acrescentar que os acontecimentos desses dias me deixam apreensiva pela forte carga emocional para quem, como eu, não esquece aquele tempo pesado (21 anos), e por saber que muitos dos que estão hoje no poder, agem como se tivessem esquecido.  É surreal.

Certa vez, há muito tempo, um colega muito inteligente - na época do Curso Ginasial - me disse: "As liras são diferentes, mas as dores não."


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