Escrever é um dom?
Mariblue - "Obvious - recortes"
Lidamos com elas o tempo todo. Elas, as palavras.
Diz o poeta que não se deve perturbá-las, mas fitá-las, escutá-las e percebê-las.
Senti-las para sorvê-las e para dizê-las. E isso não se faz de qualquer jeito. Temos de buscá-las. Saiamos à sua procura e por meio dela conquistemos a liberdade e alcancemos a verdade da vida.
Certa vez ouvi dizer que escrever liberta. E o tempo, esse sagaz companheiro, provou que essa é uma verdade intangível.
Escrever liberta. Expande. Estimula. Amplia. Libera. Exorciza. Atenua. Alivia. Polemiza. Esclarece. Permite. Possibilita. Alerta. Traduz. Revela. Desvela. Sela.
Escrever é a arte de pintar com palavras.
É selecionar da paleta de tintas do vocabulário a 'cor' que melhor condiz com aquele sentimento, com aquele estado de espírito, com aquilo que vai na alma.
É combinar nuances de intensidade, cartelas de significado, amostras de possibilidades.
Escrever é pinçar palavras de uma infinita lista e gravar para sempre na tela sagrada que é o coração dos olhos que leem.
A palavra dita evapora, facilmente se dissipa, é passageira e volátil, é efêmera. O seu registro, entretanto, é algo concreto, certo, perene e possível.
À medida que escrevemos revelamos novas formas de conceber e traduzir a realidade.
Tecemos à nossa maneira a trama do cotidiano, trançando e destrinchando o rico arsenal semântico-sintático, ganhando talvez com isso a chance de tocar com dedos férteis territórios inexplorados e desconhecidos de terceiros.
A ideia defendida por Drummond em sua 'Procura da Poesia' de que no reino das palavras poemas esperam para ser escritos, que lá jazem 'calmos e frescos na superfície intata', e para escrevê-los deve haver calma e espera muda. Silêncio respeitoso. Paciência infinita.
Na feitura da escrita não pode haver pressa, nem desespero.
As pinceladas devem respeitar antes de tudo o que cada palavra tem a dizer sobre si mesma.
'Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra'; portanto não se engane, não se antecipe, não se apresse. Deixe a palavra de molho. Perceba-a. Contemple-a. Disseque-a. Só então despeje sobre a superfície branca, fria e morta, conferindo-lhe assim cor, temperatura e novo status.
A escrita dá nova vida a palavras adormecidas, dá significado ao que fora esquecido, dá sentido ao incompreendido.
A escrita é uma janela aberta para o céu do conhecimento e da descoberta. É o passaporte para outra dimensão. É o romper de fronteiras. É revelar um universo inteiro de novas possibilidades.
A escrita é o requisito para a eternidade.
Escrever talvez se destine a manter pulsante a vida que habita cada ser humano, para dar conta das coisas que não podem ser expressas por meio de palavras jogadas ao vento, mas que estarão eternizadas ao serem registradas, organizadas, combinadas, selecionadas, calculadas, intencionalmente arranjadas.
Escrever é um regozijo, uma alegria. É uma ânsia e um alívio. É um ato de liberdade maior. É o esvaziamento do ser em constante atividade efervescente, em que pululam as ideias incrivelmente fecundas que habitam a alma humana.
Escrever é a arte de pintar com inéditas e estonteantes cores as paredes da história humana.
Por meio de pinceladas vigorosas e mágicas, quem escreve muda o rumo dos fatos e revoluciona a vida. Subverte a lógica e insere no contexto monótono dos dias comuns as fascinantes maravilhas dos contos de fadas e das fábulas.
Quem escreve torna possível o irreal e realiza o impossível.
Quem escreve, definitivamente, se apropria do divino. É bem isso.
Toca com suas mãos humanas o mais sagrado dos territórios, alcança o inalcançável, afeta o inatingível, transforma o inalterável, transgride, reitera, ratifica. Reifica.
Então escrever é um dom?
Escrever é um milagre.
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