Iniciei a leitura de um dos livros da Fal Azevedo. Nossa amiga Claudia me enviou - conforme o prometido (viva! promessa cumpridíssima) - os quatro livros: 'Crônicas de quase amor', 'O nome da cousa' (crônicas e textos avulsos), 'Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite' (romance), 'Sonhei que a neve fervia' (romance).
Decidi começar pelo primeiro romance que traz uma técnica interessante de duas narrativas se entrecruzando num mesmo enredo, graficamente apresentadas com letras menores e maiores codificando tempo passado e tempo presente. Não se trata, entretanto, de 'flashes-back'; funcionam mesmo como duas histórias; são compartimentos estanques, independendo uma da outra ou em certos momentos se completando.
É preciso uma certa habilidade de leitura (prática, mesmo), infelizmente não muito comum nestes tempos de absorção de informações sempre rápidas e objetivas.
Devo dizer que esse meu comentário nada tem a ver com resenha ou resumo ou sinopse de nada. Não me atreveria a tanto. Por isso, nada de revelar a trama, nada de falar de personagens, nada disso.
Aqui no blog escrevo para mim, mania esquisita cultivada desde menina, quando nem se sonhava internet.
São os meus velhos cadernos, anotações, observações, considerações que fazia enquanto era construída minha individualidade. Apenas de um jeito mais fácil, graças à tecnologia que, como digo sempre, em alguns momentos me ajuda e em outros me confunde.
É só a minha visão de mundo.
Estou terminando de ler - falta só um pouquinho, mas gostaria de destacar alguns trechos:
..."Tudo nos assusta e imobiliza, o insondável nos habita, o inominável nos cerca, o inexorável nos governa, então que tal inventarmos uma teoria que dê a ilusão de manter o caos afastado, que desvie nosso olhar? Se a teoria puder ser chamada de "ciência", ótimo. Se a teoria puder ser chamada de "religião", "astrologia" ou "terapia holística", tanto melhor." p.118
"A cada 100, 200 anos, surge um novo gênio que muda os paradigmas. Pode demorar, mas acabamos acreditando nele, no que ele diz e nas coisas que ele prova. Qualquer coisa que nos salve deste espanto, deste susto que é estar vivo, nos atrai." p.119
Pode-se encontrar também o humor gostoso que defino como aquele que "arde mas não fere", nos acontecimentos mais corriqueiros do cotidiano simples, por exemplo:
"E-mail da Lucila: 'Oi, querida. Até a semana passada eu tinha uma máquina de lavar que pensava que era um helicóptero, fui lá nas Casas Bahia e fiz um carnê (que apesar dessa minha pose, sou pobre e adoro um carnê). Agora tenho uma máquina que pensa que é um criado mudo, silenciosa de tudo, eu fico lá, igual mãe recém-parida, toda hora vou checar se a bichinha tá funcionando. Dona-de-casa não tem sossego., Beijos, amore. Te amo. Lucila.' " p.127
A ironia contundente:
"Dei uma entrevista na TV para divulgar o vernissage. Em pânico, atordoada, fui maquiada e solta debaixo de umas luzes furiosas. A entrevistadora transformou todos os meus defeitos em atrações especiais. Depois de ser entrevistada por ela, não moro mais no bairro pobre de uma cidade pequena. Moro num 'refúgio à beira-mar'. Não sou mais esculhambada, sou 'despojada, blasé e chique'. Meu alcoolismo, meu ostracismo profissional, a morte da minha filha e todas as merdas pelas quais já passei foram 'experiências marcantes, que me ajudaram a amadurecer 'enquanto artista e enquanto ser humano a nível emocional '. Eu juro por Deus. Enfrentarei a exposição tentando me sentir não esquisita, mas 'excêntrica'.
Em algumas passagens, o texto é composto com os chamados clichês, provérbios, partes de textos publicitários, ditados populares, tudo aparentemente sem nexo.
Há um turbilhão na mente da personagem que tenta se entender e se completar para se recompor existencialmente.
Esses chavões enfileirados remetem a sua infância, sua adolescência, seu aprendizado social, os amores vividos, enfim, toda a sua formação e - por que não? - a de todos nós. Em algum momento de nossa vida, todos já ouvimos ou dissemos essas frases:
"O mundo vai acabar. Eu nunca mais falo sobre isso. Quem te viu quem te vê. Contém flúor. Diz obrigada pra tia. Seu cabelo ficou uma seda. Siga as instruções. Se você não fizer, alguém fará. Ouça a voz da razão. Faça bom proveito. Ela tem cabelos naturalmente encaracolados. Ele é bom n que faz. Só faço isso porque te amo. Caiu como uma luva." p.111
(...)
"Somos apenas bons amigos. Você deu sorte. Eu estou me acostumando aos poucos. Dá licença, por favor. Quebra um galho aqui pra mim? Eu não aguento mais. Não fale comigo nesse tom. Queria que você se lembrasse de tudo como eu me lembro. Tudo o que é meu é seu. Foi a melhor ideia que você já teve. Vamos para um lugar mais calmo? Foi um golpe de sorte. p. 111
Essa tempestade cerebral continua em trechos das páginas 112, 113 e 114.
Para mim, lembranças das aulas na faculdade quando estudávamos as classificações do discurso ( o 'indireto livre', o monólogo interior...).
Um excelente e agradável exercício de leitura, ao qual me proponho com muita satisfação.
Talvez eu esteja precisando desse distanciamento da realidade que só a boa literatura ficcional pode, com talento e sensibilidade, nos proporcionar.
Há momentos também de profundo lirismo, de profunda dor, sempre descritos em perfeita comunhão com o desencanto e desespero da pesonagem.
Uma frase pequena, mas que dói: "Um dia eu vou fazer sentido."
De todo modo, o que pretendo é registrar a boa surpresa e a admiração por essa autora.
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Ô Sueli, muito obrigada pelas palavras. Beijos e carinho. Boa semana!
ResponderExcluirFal