sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

LUCIANA SADDI - Autoestima





AUTOESTIMA

O termo significa: amor próprio. E, se já era difícil gostar de si mesmo quando a gente não precisava ser perfeito em tantas coisas ao mesmo tempo, imagine agora, em que vivemos oprimidos por exigências cada vez mais complexas e quase impossíveis de realizar. Gostar de si mesmo nos dias de hoje se tornou algo mais difícil ainda de ser alcançado.

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Eis um diálogo entre 2 personagens com autoestimas opostas, e que termina mal para um deles . 
Ao ironizar  o mundo dos negócios e a linguagem metida e ridícula,  a autoestima se fez presente! 

Crônica do livro 'Equívoco', de Jean-Michel Lartigue.



Aguinaldo pacientava na fila da Caixa Econômica Federal. Tinha sido dispensado do seu trabalho no mês anterior, depois de quinze anos de bons e leais serviços, como fizera questão de frisar o diretor de recursos humanos ao anunciar-lhe a notícia.
O diretor, coitado, estava desolado e Aguinaldo não pudera deixar de sentir pena dele enquanto escutava as suas explicações sem saída, permeadas de termos americanamente corretos.
O ‘bizeness’  o business!  parecia não estar indo tão mal, mas uma firma de consulting internacional concluíra de que era imprescindível operar um ‘daônzaizingue’ urgente sem o qual, os números não mentiam, a própria sobrevivência da empresa estaria comprometida.
Downsizing, Aguinaldo o sabia, era para administração das empresas o que os atos tribais dos temidos Jivaros eram para a antropologia, a ilustração derradeira da redução de tamanho, no caso pelo exercício burocrático do corte de cabeças.
Aguinaldo fazia parte dos reduzidos e se sentira muito pequeno, mesmo, quando limpara suas gavetas e pegara pela última vez o elevador panorâmico do edifício-sede, um prédio novo, pago a vista com recursos próprios da empresa.
Na fila para receber o seu FGTS, Aguinaldo se perguntava melancolicamente porque haviam adquirido um ‘bíldingue’ ¾ como dizia o diretor dos Jivaros ¾ de vinte andares de vidro e mármore, se era para dispensar um terço do pessoal e ficar com oito andares vazios um ano mais tarde apenas.
Estava no meio dessa reflexão quando avistou um amigo com quem não cruzava havia anos, o metidinho Roberto.

- Betão!! Quanto tempo! Como você está? Por onde você andou?

- Oi Naldo, tudo bem? Faz a long time, mesmo, my friend!

- ‘Longui taimi’? Ah, sim, claro, muito tempo. E aí cara, meu velho Betão, por onde você andou?

- Naldo, ninguém me chama mais de Betão, sabia? Agora todo mundo me chama de Bob.

- Bôbi? Virou ianque no nome, hein? Beleza, cara! Mas aí, ninguém tira sarro? Sabe? Bob, bobinho, bobão, essas coisas?

- Oh, my God, no! Claro que não! Eu arrebento quem se atrever!

- Ótimo! Mas e aí? Onde você estava todo esse tempo?

- Nos States, my friend!

- Não me diga? Fazendo o quê?

- Money, claro! Muito money, aliás.

- Me conta!

- Bom, primeiro fui fazer minha pós em Èlé.

- Você fez pose, onde?

- Oh, my God! No, eu fiz é: pós, pós-graduação, em Èlé, L.A, Los Angeles!

- Ah? Sim, L.A., claro.

- Um ‘èmibiè’, sabe? MBA, pós-graduação em administração.

- Sei, sei, já ouvi falar.

- Bom, depois fiquei na Califórnia, entrei num grupo de ‘praiveti bânkingue’, adquiri uma baita experiência, boom da web, success-story, foi um show, sabe? Me tornei um ‘sirioul-wíner’, um vencedor em série.

- Puxa, que beleza! Fico feliz de ver que tudo deu tão certo para você.

- Olha, nem sempre foi fácil, viu? Sabe como é o business, não é? Cheio de up-and-down.

 ?

- Sabe? Apendáon?

- Hum, desculpe, não, não ‘capitei’.

- Altos e baixos. Pois vou te dizer, é preciso muita garra para aguentar os trancos. Certa vez fiquei em baixa no conceito do chairman, mas graças a Deus consegui fazer um come-back daqueles!

- ‘Comibaque’?

- Volta por cima! Por cima dos outros, é claro! Entrei no board e por pouco não me nomearam CEO.

- ‘Cihihô’? Ah! Deixa pra lá, eu desisto!

- Bom, mas, e você, Naldo? Tudo allright?

- Xi! Infelizmente, não. A minha vida inteira foi pras cucuias! Paguei mico! Bobeei e dancei! Entrei pelo ralo! Também, eu devia ter aberto o bico mais cedo, chutado o balde, o pau da barraca, posto a boca no trombone, espalhado merda no ventilador, teriam visto o que é bom para cachorro!
Em vez disso fiquei na dúvida, e aí sabe como é, né? Nem caguei nem saí da moita, fiquei coçando a cuca, quando acordei era tarde. Dei nó em pingo d’água, resultado, entrei na dança das cadeiras e minha cabeça rolou. Agora tô na pindaíba, com pires na mão da Caixa, mais perdido que cachorro em dia de mudança. Entende?

- Euh… quero dizer, mais ou menos.

- Deixa pra lá…

- Sorry…

- Claro, sorri. Mas do quê? (suspiro). Peraí, só agora é que estou me tocando; o que você, Bob, está fazendo aqui na fila do FGTS????

- Oh, my God, nothing, nada! Uma peripécia de percurso, apenas. Coisa boba. Ocorreu que eu tinha sido encarregado de uma big consultoria numa firma daqui e, digamos, acabei exagerando nas recomendações finais.

- Como assim?

-  Bem, a firma era pra lá de sólida e saudável  acabavam de comprar cash um building novinho de vinte andares  mas errei um tiquinho na análise das contas da empresa e recomendei um downsizing radical, com corte de 33% do pessoal.
Na realidade, poderiam ter contratado e não demitido. Ficou um pouco chato, claro, mas conseguimos abafar as coisas. Para não criar ondas, negociei minha saída da empresa de consulting que me empregava. Para mim, acaba sendo legal, pois eu recupero meu fundo de garantia e vou abrir um business pessoal. Great, no?

Aguinaldo teve de pacientar na fila do pronto-socorro. O raio-x mais tarde revelou a ausência de fratura. O soco havia sido forte, mas seu punho era sólido e os ossos superiores da mão direita resistiram ao impacto. Aguinaldo foi liberado e voltou para casa.
Bob continua internado até hoje, recuperando-se lentamente da tripla fratura do maxilar inferior. Dizem que repete convulsivamente as mesmas palavras, o rosto marcado por dor e pavor: “Oh, my God, no! Oh, my God, no!”.

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