Trechos do diálogo final em “Casa de bonecas”, de H. Ibsen: personagens Nora e Torvald Helmer (marido e mulher)
"NORA:
(...) É esse o ponto. Você nunca me compreendeu. Tenho sido tratada muito injustamente,Torvald; primeiro por papai, e depois por você.
(...)
Vocês jamais me amaram, apenas lhes era divertido se encantar comigo.
(...)
É assim mesmo, Torvald; quando eu estava em casa, papai me expunha as suas ideias, e eu as partilhava. Se acaso pensava diferente, não o dizia, pois ele não teria gostado disso. Chamava-me sua bonequinha e brincava comigo, como eu com as minhas bonecas. Depois vim morar na sua casa.
(...)
NORA (imperturbável)
Quero dizer que das mãos de papai passei para as suas. Você arranjou tudo ao seu gosto, gosto que eu partilhava, ou fingia partilhar, não sei ao certo; talvez ambas as coisas, ora uma, ora outra. Olhando para trás, agora, parece-me que vivi aqui como vive a gente pobre, que mal consegue ganhar o seu sustento. Vivi das gracinhas que fazia para você, Torvald; mas era o que lhe convinha.
Você e papai cometeram um grande crime contra mim. Se eu de nada sirvo, a culpa é de vocês.
(...)
...Creio que antes de mais nada sou um ser humano, tanto quanto você ... ou pelo menos, devo tentar vir a sê-Io. Sei que a maioria lhe dará razão, Torvald,e que essas ideias também estão impressas nos livros. Eu porém já não posso pensar pelo que diz a maioria nem pelo que se imprime nos livros. Preciso refletir sobre as coisas por mim mesma e tentar compreendê-Ias.
(...)
...Não, nada entendo. Mas quero chegar a entender e certificar-me de qual de nós tem razão: se a sociedade ou se eu.
(...)
Eu tornei a ser uma avezinha canora, a sua boneca, que você passaria a proteger com mais cuidado, pois percebeu quanto era delicada e frágil!”
(...)
**
Li pela primeira vez essa peça há muitos anos,
Na época, eu não tinha maturidade suficiente para mergulhar no universo intenso da personagem Nora, ela mesma sem compreender suas angústias e dúvidas existenciais, embora tivesse um vislumbre do que era, verdadeiramente, a questão que a incomodava.
No início da leitura eu até pensava nela como uma mulher mimada e voluntariosa, só isso.
Agora, muito tempo depois, relendo e observando o que está por aí, confesso minha emoção com essa peça e admiração sempre maior pelo autor.
Arte é assim.
Guardadas algumas proporções, a condição sociocultural da mulher atual ainda precisa ser pensada, falada e demonstrada o tempo todo.
Soa tristemente como um apelo para sermos consideradas, antes de tudo, seres humanos.
* * *
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