Para ser feliz, pense na morte
Karin Hueck - 15 de Outubro, 2013 - "Gluck project"
A Dra. Ana Cláudia Arantes tem uma profissão que, aposto, você não queria ter: ela é médica especializada em cuidados paliativos do hospital Albert Einstein, em São Paulo. Ou seja, ela só cuida de pessoas que não têm chance de cura. Entrevistei-a para uma reportagem que fiz para a Superinteressante (que quero retomar aqui no Glück algum dia), numa conversa que não consegui esquecer até hoje.
Só algumas frases acabaram entrando na revista, mas aqui você pode ler a entrevista inteira.
Ao final de tudo, aposto o oposto: depois de ler, você bem que queria ter o trabalho dela – uma aula de felicidade e um manual prático de como viver bem.
*
Qual é o seu trabalho exatamente?
A minha formação é geriatria. Desde que me formei, sempre me dediquei a uma área do conhecimento médico que se chama medicina paliativa. Isso quer dizer que dou assistência para as pessoas que não têm possibilidade de cura ou tratamento que prolongue as suas vidas. É câncer, demência, doença cardíaca e pulmonar na fase final. Quando a pessoa chega nesse ponto, olhamos para o seu sofrimento. Eu trato todas as dimensões dele, não só a biológica: o sofrimento físico (dor, falta de ar, fadiga, alterações gastrointestinais) e os sintomas emocionais relacionados ao fim da vida (depressão tristeza, culpa, sensação de abandono, tudo que aparece quando você se despede da vida). Você também tem de cuidar da família da pessoa, porque ninguém fica doente sozinho – mesmo depois que morre, você continua existindo na família. E tem também a dimensão espiritual, que é o grande mistério do ser humano. A gente dá condições para que essa dimensão se manifeste. Nesse momento da vida, ela costuma ser a mais expressiva – e não é necessariamente a religião. É a hora que a pessoa pensa no sentido da vida. Ninguém para para pensar no sentido da vida quando ganha na loteria, ou quando está namorando o cara mais lindo do mundo. Você não diz: “ah, agora que está dando tudo certo, qual é o sentido da vida?” A gente só pensa nisso quando o tapete sai do seu pé. É isso que eu faço.
Você conheceu alguém que chegou ao fim da vida sem arrependimentos?
Sim. São pessoas que fizeram o melhor que puderam. Me lembro de um paciente, um homem que era ateu. A gente teve essa conversa sobre arrependimentos durante um pôr-do-sol. Eu perguntei a ele: “Você se arrepende de alguma coisa? Você faria alguma coisa diferente?” E ele disse que não. Disse: “Se eu tivesse escolhido outros caminhos, teria encontrado outros abismos, outras curvas. As decisões que eu tomei foram as melhores que podia tomar naquele momento. Eu fiz o melhor que pude. Então eu estou em paz.” E ele nunca fez terapia! Ele já nasceu pronto! Ele era ateu, então sua dimensão espiritual era em relação com a natureza e o universo. A pessoa pode ser relacionar consigo mesmo, com os próximos, com o universo ou com Deus. Cada um trabalha em uma dessas dimensões. Esse paciente se relacionava com o universo. Então ele falava para mim: “Ana Paula, olha o sol. O sol está morrendo. Por que eu tenho que viver para sempre, se tudo no universo nasce, tem seu desenvolvimento e morre?” E esse homem morreu no pôr-do-sol, exatamente.
Mas isso é a minoria dos casos…
É mais raro, porque as pessoas na maior parte das vezes tomam decisões que não são baseadas no melhor para elas, mas no que os outros acham que é melhor. O grande dilema do ser humano é ser amado. E quando ele toma essas decisões, se baseia na possibilidade de receber mais amor. O que as pessoas não entendem é que não é um ato de egoísmo você pensar no que é melhor para você. Você escolher algo que vai te fazer mais feliz não é maldade – pelo contrário. Imediatamente você também vai deixar mais felizes as pessoas à sua volta. E você também vai ser amado.
Por que você acha que tanta gente se arrepende de ter trabalhado tanto?
O trabalho tem a ver com o tempo dedicado. Se você pensar, quanto tempo você passa no trabalho por dia?
Nove horas.
Então, nove horas no trabalho, mais oito para dormir, sobram sete horas para viver. E nessas sete você também pensa no trabalho.
No fim da vida, você olha para trás e vê tudo o que se dedicou ao trabalho – talvez você tenha sido demitida aos 40 anos, ou você não gostava da profissão, ou escolheu a carreira para agradar seu pai ou sua mãe, ou ficou trabalhando para juntar patrimônio para seus filhos. No fim, você não leva nada disso.
Agora, se você faz um trabalho que realiza você, que a deixe satisfeita consigo mesmo, e que traz resultados bons pra sua vida pessoal, ninguém se arrepende.
Os seus pacientes sofrem alguma mudança quando estão morrendo?
Totalmente. É maravilhoso.
Quem trabalha com cuidado paliativo vê uma coisa muito clara: ao longo da doença o paciente vai se aprimorando. O paciente consegue evoluir de tal forma e para um sentido da sua existência – já que vai ter que transcender a existência física -, em que o bem que existe dentro dele se manifesta com muita clareza.
Quando estamos falando de alguém que já era bom, é um processo natural. Agora, as pessoas que eram muito ruins mudam muito – você sabe que tem, né, gente muito ruim por aí, gente que a família sempre soube que era ruim. Esses mudam muito.
Acontece com todo mundo: por exemplo, aquele cara que foi alcoólatra a vida toda, batia na mulher, não levava dinheiro pra casa. No final da vida ele se transforma. Ele se arrepende, ele pede perdão, ele agradece, ele diz que ama. E sai da vida pela porta da frente.
Tem um negócio muito misterioso entre os seres humanos. Todo mundo sempre fala que a primeira impressão é a que fica, mas não é. É a última. Quando você sai bem daqui, você para sempre vai ficar bem. Parece que tudo que você aprontou na vida fica menor. “Mas no final ele foi maravilhoso”, lembram.
E todo mundo passa por isso?
Todo mundo. É muito raro não acontecer.
Quando você dá essa assistência, esse cuidado paliativo, você dá chance a ela de se expressar completamente.
Ninguém vai ser uma boa pessoa, se estiver com dor. Mas quando você cuida do sofrimento, a pessoa consegue manifestar o que de melhor há dentro dela, a essência de verdade.
É muito raro alguém chegar no fim amargurado. Geralmente, são pessoas que, ao longo da doença, não tiveram muita chance de ponderar sobre o fim da vida.
A grande dificuldade que a gente tem no Brasil é que não se fala sobre a doença para o paciente. Os familiares pedem: “Ó, não conta nada, hein”. Como assim não conta nada pra ela? A doença está dentro da pessoa, não no exame que você pode esconder na gaveta. A doença está nela!
Para alguém que vê tão de perto o fim da vida, quais seriam suas dicas para viver bem? Seria não se preocupar?
Não tem essa de não se preocupar. Isso seria muito hedonista, né? “Ah, então vou levar a vida na flauta”, mas a vida não é uma flauta, ninguém veio a passeio.
A dica não é levar nada a sério, é levar tudo a sério. Mas de maneira que, ao final, você possa dizer que fez escolhas conscientes. Não pode ficar se martirizando.
Você faz uma escolha com trinta anos e aí aos cinquenta fica se lamentando: “Ai, como pude fazer aquilo”. Isso é roubar no jogo: você é uma criatura de cinquenta anos julgando uma de trinta, que não tinha noção do que podia acontecer. Isso é errado, não é honesto.
Honesto é olhar para o momento em que você tomou aquela decisão e ver se você seguiu seu coração.
O problema é lembrar disso tudo na vida imediatista…
O problema é que a gente não pensa na morte. A morte é uma excelente conselheira.
O dia em que você precisar de um conselho bem bacana, bem verdadeiro, procure alguém que está morrendo e marca um horário (risos).
Por que você escolheu essa carreira?
Veio do sofrimento.
As pessoas para quem eu dou aula hoje vêm porque acham bonito, uma área humana da medicina.
No tempo em que eu estudei, eu fiz isso porque a medicina era desumana.
Lembro que ainda estava na faculdade quando um professor me disse sobre um paciente: “Não tem mais nada que a gente possa fazer”.
E eu: “Como assim, mais nada? Quando o cara mais precisa de médico, não tem mais nada pra gente fazer?”
“Ah, tem pouco tempo de vida, não vale a pena.”
E eu penso, meu, se tiver duas semanas de vida, eu não tenho tempo a perder! Alguém tem de dar atenção pra essa pessoa, tem que dar importância para isso.
Então escolhi por causa disso: eu valorizo meu tempo.
E você já tirou algum aprendizado para você dessa profissão?
Você não faz ideia do que é isso. É demais, demais.
Eu estou na primeira fila vendo o que vai acontecer comigo – o que já aconteceu comigo, aliás, porque eu já tive perdas. Isso faz com que eu tenha chance de ponderar sobre essas perguntas antes que a morte venha me convidar pra passear. Isso é uma benção.
Seria bom se todo mundo tivesse essa oportunidade.
Seria ótimo. Acho que passar um dia comigo é um negócio que realmente muda a vida das pessoas. Todo mundo que passa lá diz que muda todas as perspectivas.
Não adianta nada ver as tragédias que acontecem no mundo pelo jornal. Tem tragédia acontecendo todo dia, isso distrai. Acaba não trazendo sentido pra sua vida.
Agora, quando você acompanha uma pessoa todo dia, no dia-a-dia, à medida que ela se aproxima da morte, o que ela faz com isso é magnífico. É um negócio encantador o que as pessoas fazem com a própria vida quando elas sabem que está acabando.
Sinto que as pessoas se perdem tentando seguir todas as regras que existem para viver mais e melhor…
Você já fez a conta de quanto tempo se perderia se você mastigar 25 vezes, se você meditar uma hora, se você fizer atividade física? Cai na real. Que horas isso vai acontecer?
Acho que a medicina é uma forma das pessoas se distraírem um pouco daquilo que realmente importa, que é viver.
Mas a gente deveria usar a medicina como uma ferramenta para viver melhor. E isso não é uma receita de bolo, porque o meu “viver melhor” não é o seu.
Não adianta seguir todos os conselhos. Uma coisa que eu aprendi, vendo a morte sempre por perto é que as pessoas nessa situação começam a ter um discernimento que nunca tiveram na vida. Elas sabem. Se ela estiver com uma doença grave e eu tentar enrolar, ela percebe. Não adianta tentar enganá-las com regras.
O que é importante para se despedir bem?
Eu acho que o que é mais difícil é ter pessoas ao teu lado que vão dar conta de cuidar de você nesse momento. Essa área que eu faço precisa de profissionais qualificados.
Humanidade é um negócio que você desenvolve ao longo da vida. E para você estar do lado das pessoas que estão no fim da vida, você tem de ter formação e conhecimento. Porque é como estar no front. O front da morte. Se você não estiver preparado para estar ali junto com os pacientes, melhor não estar.
Então como amigos e familiares vão saber como lidar com isso? É quase tão difícil pra eles.
O mais difícil é sempre para o paciente.
Se meu pai morreu, ele se despediu da vida. Eu perdi meu pai, mas ele perdeu tudo.
Então o luto do paciente é imenso perto do luto das pessoas que vão ficar.
Mas, para que aqueles ao redor fiquem bem, o doente precisa passar por um processo de fim de vida que ajude esses amigos e a família a aceitar a morte.
Não quer dizer que não vai doer e que não vai ter tristeza. Isso é legítimo e tem de ter.
Eu sei que fiz um bom trabalho quando chego para fazer um atestado e constatar a morte de alguém e todo mundo no quarto está com os olhos vermelhos e sorrindo. Porque a tristeza existe, mas existe uma paz de que tudo foi feito.
A certeza de que o melhor estava disponível. Isso não quer dizer morrer no Einstein, a pessoa pode falecer bem na casa dela.
Quando os familiares e os amigos têm essa paz, aí sim fica tudo bem. Você passa pelo período de luto, mas em paz.
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